Abril, o meu Abril
A memória do meu avô, dos nossos avós, merece mais, merece que a revolução não pare, que não a deixemos parar, e que mesmo confinados ganhemos fôlego para fazer mais e melhor, para exigir mais e melhor.
É o primeiro aniversário que passo em circunstâncias de confinamento obrigatório, à imagem de muitos portugueses. O que talvez nos permita, de forma muito, muito longínqua, sentir, em condições imensamente mais confortáveis, o medo de viver numa sociedade em que a livre expressão e reunião seriam crimes. Felizmente, neste dia, podemos percepcionar a Revolução dos Cravos enquanto marco da nossa democracia.
Há 13 anos, o meu avô materno faleceu. Felizmente, 15 dias antes tive a rara oportunidade de me sentar na cama ao lado dele e conversarmos mais do que de avô para neto, de homem para homem. Embora consciente de que a vida lhe fugia rapidamente, não queria morrer. Foi, provavelmente, a única vez que vi o meu avô chorar. Ouvi-o contar a sua vida, e ouvi-o a cada palavra como que a murmurar que precisava de viver mais para viver o que não lhe foi possível. Nunca visitou outro país, tinha estudado muito pouco (4.ª classe) e teve uma vida muito dura, tendo sido em grande parte pedreiro. Foi um avô incrível, fez-me uma guitarra com canas e barbas de milho, sempre que voltava do trabalho ao fim-de-semana trazia Sugos de ananás para todos os netos, no dia a seguir às vindimas levava-me a comer as uvas morangueiras brancas que sabia que eu adorava, (e coitado) chegou a tocar numa viola os primeiros acordes de Shine On You Crazy Diamond dos Pink Floyd (de ouvido e porque lhe pedi muito), e foi na casa dele que encontrei os livros (apesar de poucos) que me fizeram curioso.
Além das preciosas memórias que guardo, fiquei-lhe com um livro, um livro cujo título é PIDE: A História da Repressão. Na contracapa está, provavelmente, a única coisa escrita que tenho e julgo alguém terá dele, que transcrevo tal e qual ele o fez:
Eu queria simpelesmente
ter um lugar de mato verde
para pelantar e para colher.
Ter uma casinha branca
ter varanda, ter quintal
e uma janela
para ber o sol nacer.
O meu avô não foi nem um poeta nem um músico reconhecido, mas foi um avô incrível. O meu aniversário passou a ser difícil nos anos que se seguiram. E, em forma de homenagem, decidi viajar e celebrar esta data em cidades europeias, fazer o que não lhe foi permitido, usar a liberdade que não lhe foi permitida, ser grato e consciente do privilégio que tenho por viver numa sociedade muito diferente, tanto no acesso a recursos como em oportunidades.
Desde 16 de Março que estou em confinamento e em teletrabalho. Entretanto, a minha filha iniciou as aulas à distância. Naturalmente e com recurso às redes sociais, criaram-se grupos de apoios entre pais e mães que procuram apoiar-se no sentido de ultrapassarem as dificuldades que sentem em lidar com tecnologias, dispositivos, aplicações e ferramentas digitais.
Se, numa primeira fase, fiquei consciente de que a relação com as novas tecnologias não era, de todo, uma relação tão boa quanto se apregoa, lentamente fui percebendo que eram várias as crianças que não podiam assistir às aulas à distância: por não terem internet, por não terem dispositivos electrónicos que possibilite o acesso — ou, tendo, têm que os partilhar com os irmãos ou irmãs, o que em alguns casos coincide com os horários das aulas à distância —, e ainda crianças que estão com os avós, analfabetos funcionais que não as conseguem ajudar, nem no acompanhamento aos processos de ensino aprendizagem, nem na relação com os dispositivos e as aplicações necessários para acompanharem as aulas.
Vivemos numa era digital, hoje a literacia é também digital. E esta questão torna-se premente e pertinente porque este confinamento fez emergir as vulnerabilidades da população portuguesa no que à educação dizem respeito. Aos baixos níveis de literacia somam baixos níveis de escolaridade e, também, baixos níveis de literacia digital.
Os relatórios da OCDE (Education at a Glance) têm reforçado, ano após ano, a necessidade de Portugal aumentar os níveis de escolaridade da sua população. Entretanto, à boa maneira portuguesa, tapamos o sol com a peneira. Portugal foi recordista, a par da Austrália, no aumento do número de estudantes que terminaram o ensino secundário através do ensino profissional. Entre 2005 e 2014, o aumento foi de 40% (OCDE, Education at a Glance, 2016). Se se verificou um aumento exponencial do número de portugueses cujo nível de escolaridade é o ensino secundário, naturalmente assistiu-se a um abrandamento do número de estudantes a frequentarem o ensino superior, conduzindo a que em 2019, num relatório da Comissão Europeia (Kottman e colegas, 2019), a República Checa, a Letónia e Portugal merecessem recomendações: “Enfrentam um declínio no número de estudantes, tanto na frequência como nas taxas de conclusão do ensino superior. Para estes países, um aumento geral das matrículas no ensino superior é considerado importante.”
Não vou debater aqui a importância do acesso ao ensino superior, ou tampouco se o ensino profissional é uma via maioritariamente para crianças e jovens desfavorecidos, até porque já existe muita literatura sobre estes pontos em concreto. O meu ponto é: queremos sempre chegar mais longe sem olhar a meios e pelos caminhos mais curtos, não nos importamos se mais quantidade significa mais qualidade e se, de facto, as políticas públicas e os programas servem a população portuguesa — ou apenas para preencher indicadores.
A memória do meu avô, dos nossos avós, merece mais, merece que a revolução não pare, que não a deixemos parar, e que mesmo confinados ganhemos fôlego para fazer mais e melhor, para exigir mais e melhor.