Será Bacelar Gouveia mesmo católico?
Ficámos sem perceber porque é que não rezar em colectivo é igual a não comer. Sem supermercados, Portugal morreria à fome. Com os templos religiosos fechados, Portugal deixa de acreditar em Deus? Não é o ideal. Mas em pandemia nada é ideal.
O professor Jorge Bacelar Gouveia teve a “amabilidade” de pedir um “direito de resposta” para responder ao meu último “coffee break”. A ausência de argumentos é flagrante e não resisti.
Catedrático de Direito e mediático constitucionalista, Bacelar Gouveia defende que o estado de emergência declarado em Portugal “suspendeu a liberdade religiosa” — as missas colectivas e presenciais — e fez uma pergunta: se os supermercados estão abertos, porque não as igrejas?
Diz Bacelar Gouveia que o direito constitucional “não é o meu forte” — é verdade. Por isso foi pena o professor não ter aproveitado para dizer porque é que suspender as missas colectivas viola a liberdade religiosa. Não o fez no primeiro texto e voltou a não o fazer no segundo.
Na resposta aqui publicada, o seu primeiro argumento resume-se a dizer que eu não li o artigo 19.º da Constituição. Se há coisa que tem sido repetida desde 18 de Março, até no Correio da Manhã, é a passagem da Constituição que diz que “a declaração do estado de emergência em nenhum caso pode afectar a liberdade de religião”. É isto um argumento de um constitucionalista? Dizer o que está na Constituição não é um argumento. Isso é citar, é dizer o que está lá escrito.
O que é interessante — porque estimula a reflexão da sociedade — é mostrar como é que o que está escrito na Constituição “prova” que a nossa ideia está certa. É uma mania que temos desde Aristóteles, que chamava “invenção” a esta parte do processo de persuadir.
Por isso há discussões fascinantes sobre como interpretar a Constituição e não é raro haver “votos vencidos” nas decisões do Tribunal Constitucional. Foi o que aconteceu nos acórdãos n.º 134/2020 sobre o crime de lenocínio e n.º 465/2019 sobre a procriação medicamente assistida, ambos recentes e ambos com “votos vencidos”. Nunca vi um debate no qual os constitucionalistas se limitam a dizer o que está escrito na Constituição. Isso, nós — leigos e ignorantes —, sabemos fazer.
O segundo ponto do “direito de resposta” é um mundo. Fascinante o uso da palavra “confissão” ligada a ateísmo — “que confessa professar”, escreve Bacelar Gouveia. Confissão? Pensava que as confissões serviam para expiar pecados e vergonhas secretas. Ser ateu não incomoda o Papa Francisco, eu sei. Mas deve incomodar o professor.
O mesmo para a ideia de “religião negativa”, típica dos que não concebem um mundo sem Deus. É curioso como tantos religiosos tentam convencer os ateus a abraçar uma religião. Não me lembro de ver ateus a fazer proselitismo da negação de Deus. Não há templos do ateísmo, rituais do ateísmo, feriados para celebrar o ateísmo, marchas de ateus, televisões de ateus, grupos para convencer adolescentes a serem ateus. Ao contrário dos religiosos, os ateus simplesmente são. Já agora, também achei graça ler a frase “se é mesmo ateia”. Um clássico. Porque é que os crentes põem sempre em causa a descrença? Teria algum sentido perguntar: será que Bacelar Gouveia é mesmo católico?
No fim, ficamos sem perceber porque é que não rezar em colectivo é igual a não comer — sem supermercados, praças e mercearias, Portugal seria impedido de comer e morreria à fome. Com as igrejas, mesquitas, sinagogas e todos os templos fechados, Portugal deixa de ser religioso? Não podem as pessoas rezar sozinhas, nas suas casas, com as suas famílias, com os seus livros sagrados, com os padres na televisão, durante umas semanas? Não é o ideal, todos percebemos. Mas nada é o ideal em tempos de pandemia.
Ou falamos, afinal, da intolerância do fundamentalismo católico que tudo faz para se opor ao Papa Francisco, cuja coragem e espírito progressista tanto incomodam os conservadores da igreja, dos “huguinhos”, à Fraternidade São Pio X, passando pelos “legionários de Cristo”? Mesmo que tivesse sido declarado o recolher obrigatório — como na Turquia —, e não o “dever de recolhimento”, estariam as pessoas em Portugal limitadas na sua religiosidade? O estado de emergência limita a circulação e a reunião de grupos, não a fé. Não li que as igrejas tenham sido fechadas pelo estado de emergência. Os padres, por precaução, decidiram fechá-las. Da mesma forma que os restaurantes e as papelarias podem estar abertos mas muitos acharam prudente fechar. O estado de emergência limita a dimensão colectiva das missas — não a dimensão religiosa dos cidadãos.
Bacelar Gouveia diz ainda que “apouquei” a sua opinião, “dando a entender que era uma ‘voz isolada’”. Mesmo que tivesse sugerido isso — que não fiz — desde quando é que estar isolado na defesa de uma ideia é uma fraqueza? Algumas das pessoas mais brilhantes são as que defendem ideias contra-corrente e originais. Escapa-me o argumento.
Numa coisa estaremos de acordo: o objectivo do professor Bacelar Gouveia era criticar o Papa Francisco. Eu percebo. Se era isso, não precisava de tantos rodriguinhos.