Sair de casa sem bater a porta: o mundo em videochamadas
O “novo normal” alterou rotinas e interacções sociais. Amigos e familiares são vistos através do ecrã do computador ou do telemóvel: o isolamento é contornado através das videochamadas, que nos levam a discotecas, ateliers ou ginásios. Depois disto tudo, alerta um investigador, é provável que estranhemos a versão física dos mais próximos.
Num laboratório em Boston, nos Estados Unidos de há 144 anos, Alexander Graham Bell dizia, ao telefone: “Senhor Watson, venha cá. Preciso de vê-lo.” Durante a primeira chamada telefónica, a história escrevia-se (e falava-se e ouvia-se) naquele 10 de Março de 1876. Graham Bell não estava longe de Thomas A. Watson, que ouvia estas palavras no quarto ao lado. E, mesmo assim, precisava de ver o assistente. Hoje, volvido século e meio, mais de metade da população mundial cumpre o confinamento forçado por uma pandemia que altera rotinas — e as interacções sociais. Em muitos casos, redu-las a videochamadas. E, na volta, através da plataforma escolhida para a videochamada, lembra-se a amigos e familiares, de longe ou de perto, que o italiano Antonio Meucci foi o primeiro a entregar a patente e que a invenção do telefone lhe foi reconhecida em 2002.
Ou, então, organiza-se uma chamada só para dançar pela noite fora. Não há grandes protocolos: “Ligamos um dos telemóveis à coluna para passar o set. E depois estão dez pessoas de pijama na sala com uma garrafa de vinho, a dançar.” Para Sofia Costa, gestora de clientes de 25 anos, assistir ao livestreaming de DJ sets com os amigos é “uma forma de distracção e de manter a sanidade”. Depois de o primeiro estado de emergência entrar em vigor, subiu o país (desde a capital, onde trabalha, até Guimarães, onde vivem os pais e os avós) e para trás ficaram as saídas quinzenais para “o Lux ou para o Kremlin, por exemplo”. Agora, as discotecas entram-lhe casa adentro através do telemóvel. “Dançamos, às vezes estamos só a conversar. Mas, na maior parte das vezes, pomos óculos de sol, lançamos confetes, temos candeeiros a fazer de Sol para parecer que estamos numa matiné. E um dos meus amigos tem uma máquina de fumo!”, conta. O limite de decibéis também não é violado em casa de Pedro Sousa, de Arcos de Valdevez. Talvez os dois já se tenham “cruzado” no Lux. “Dei conta de que nos comentários do livestream a malta está toda a conversar. A fingir que estamos lá, mesmo”, conta.
No primeiro dia em que Pedro trabalhou a partir de casa, a empresa decidiu fazer “alta festa”: ele improvisou um set, “a maior parte estava a beber”. Estar em casa não impossibilita a diversão nocturna do jovem: serve de exemplo a videoconferência no Zoom do Club Quarentine — no qual já participou Charli XCX, por exemplo — ou os lives no Instagram de Moullinex. E o gestor de comunicação, de 24 anos, arranja ainda tempo para concertos ou para os directos diários de Bruno Nogueira, que juntam milhares de espectadores no Instagram. “Não liguei nada, no início. Conforme os dias foram passando, mais via. E, recentemente, eu e um grupo de amigos juntamo-nos em chamada de vídeo a ver, mas vamos conversando e fazemos a nossa versão. Rimo-nos duplamente”, explica.
“Não é a mesma coisa”
Nenhum dos dois jovens trocaria, contudo, as saídas pré-pandemia pelas do pós. “Quero acreditar que grande parte das pessoas não vai querer abdicar de ver um artista presencialmente”, continua Pedro. Na verdade, perspectiva Sofia, “estas iniciativas podem cultivar o gosto pela música electrónica” — mas não só. “E, no final de tudo isto, fazer com que comecem a frequentar outros espaços.” Mas nada substitui a versão presencial da coisa, ainda que muito possa mudar.
Das conclusões a retirar de reflexões em tempos de pandemia, “um dos sentidos a reforçar é a importância dos contactos e interacções sociais para certas funções sociais”, começa por explicar Paulo Peixoto, investigador do Centro de Estudos Sociais de Coimbra. O também professor da Universidade de Coimbra não descarta o “sentido óbvio de como as tecnologias vão passar a ser usadas, forçosamente, para um conjunto de coisas”, mas frisa que “este momento evidencia as limitações das novas tecnologias”. É ele que conta ao P3 a história do Graham Bell, frisando a naturalidade da necessidade de ver e estar com alguém. “Obriga-nos a pensar que as tecnologias têm uma importância tal que, muitas das vezes, não nos damos conta da importância destas interacções presenciais”, acrescenta. E alerta para a agudização da “guetização e das desigualdades sociais” através das mesmas. “Por um lado parecem mais democráticas, mas aceitamos que as videoconferências possam substituir o modo como fazíamos as coisas. Mas as pessoas continuam a fechar-se nos seus lares usando-as.”
Por isso, resgata um “conceito com 50 anos, a proxémica”, para questionar se o contacto físico, as distâncias emocionais e a intensidade das relações serão igualmente intensas ou se serão aplanadas pela “incontornável cultura tecnológica” — para além da alteração de comportamentos que conter a propagação do vírus acarreta. “Vamos perceber ainda melhor” até que ponto a tecnologia é intensa e emocional, aponta Paulo Peixoto. “Os estudantes queixam-se das aulas, que são uma seca. Mas hoje podem, de um momento para o outro, pensar o contrário, ao assistir às aulas por videoconferência”, sem estar numa sala de aulas (por muito que a matéria seja aborrecida).
Haverá também quem, depois de tanto se esforçar para frequentar o ginásio religiosamente antes de se confinar em casa, sinta agora saudades do sacrifício. E também quem sinta saudades de dar as aulas presencialmente, como Daniela Antunes, 25 anos. É instrutora de natação e de kickboxing, para além de frequentar um mestrado em Psicologia do Desporto e Desenvolvimento Humano na Universidade do Porto. Tem dado aulas através de directos no Facebook (de kickboxing, já que de natação é mais difícil neste contexto) e trabalha “principalmente com miúdos”. Não tem sido fácil e “não é a mesma coisa”: “Sinceramente, não acho grande piada. Mas o facto é que as pessoas gostam e conseguimos dar aulas de kickboxing a quem, não fosse o Facebook, nunca experimentaria.”
Será uma “boa motivação” para que muitos comecem a frequentar ginásios e aulas presenciais de kickboxing ou outro desporto — “mas nunca um substituto”. “Não consigo corrigir certas posições que podem até estar a fazer mal à pessoa. Mas é muito importante para a nossa saúde mental”, diz. A mãe de Daniela, que vive em Bruxelas, queixava-se de “chegar ao fim do dia com muita energia”, depois de se ver “obrigada a ficar por casa o dia todo”. A jovem vimaranense decidiu treinar com a mãe e a irmã “todos os dias de manhã”, através de videochamada. Ainda não convenceu o pai, mas a mãe já vai num bom caminho: “Ela tem 44 anos e nunca fez exercício a não ser caminhada. Criámos este compromisso, mas só aconteceu por estarmos em confinamento. Mas foi uma boa desculpa.” Assim, “mantém-se a mente ocupada” e uma parte do dia está passada.
Pintar e fotografar isolado
Se a distância dificulta o trabalho de Daniela, o mesmo não se aplica a Rafael Oliveira. “O isolamento social no meio artístico acaba por ser essencial, até”, diz o artista plástico de 23 anos, que “já passava muito tempo sozinho”. O jovem de Guimarães encontrou uma forma de trabalhar com pessoas sem gastar dinheiro e sem partilhar o mesmo espaço. Decidiu anunciar, no Facebook, que começaria a retratar quem quisesse através de videochamada. “Como não tenho a opção de ter pessoas a posar para mim, pensei que podia alcançar qualquer pessoa com as tecnologias. A interacção é incrível”, nota. Na volta, a sessão torna-se numa conversa e, mesmo com a distância, vai conhecendo a vida de quem retrata, “mesmo a vida privada”. “Menos quando tenho de desenhar a boca”, ressalva. A qualidade da ligação pode ser um desafio, principalmente no que diz respeito às cores, mas, com paciência e algumas horas, chega-se a bom porto. “É algo que possivelmente posso continuar e é um recurso brutal”, garante.
Diogo Lima partilha da opinião do artista plástico: “[As videochamadas] abriram portas a algo que eu não tinha pensado.” Tanto que, por estes dias, o fotógrafo de 29 anos trocou o obturador da câmara por um clique à distância. “Depende muito da ajuda de quem está a ser fotografado”: o modelo respeita as indicações de Diogo, que informa acerca dos ângulos ou da exposição à luz, por exemplo. E o clique é dado através da tecla que captura o ecrã. “É feito um print screen e depois edito. Vi uma coisa do género de um fotógrafo italiano, mas com a máquina. Só que achei que seria mais fácil assim por causa da ligação de rede. É um segundo de boa qualidade”, diz. Com as fronteiras entre o que é fotografia ou não diluídas, Diogo atenta que, “pelo menos, esta é uma boa oportunidade para mostrar que não é por estarmos fechados em casa que não podemos ser criativos”.
E depois?
E ser criativo também é possível com os amigos todos juntos numa videoconferência. Voltamos ao caso de Pedro, a quem se junta Rute Pires. Os dois amigos chamam outros amigos (e amigos de amigos) para as suas versões de Drink & Draw, inspiradas nas sessões da Rosa Imunda, no Porto. Primeiro, utilizavam a Houseparty. “Depois do escândalo, e como muitos apagaram a aplicação, tivemos de pensar em alternativas e surgiu o Drink & Draw”, conta Rute. A social gestora de redes sociais de 24 anos trabalha e vive no Porto, mas voltou para a casa dos pais, em Vale de Cambra, e é a partir de lá que explica o procedimento. Há “uma pessoa responsável por cada sessão” e “dinâmicas de desenho”. Convidam-se “pessoas de grupos diferentes” para o Zoom e é obrigatório “material de desenho ou pintura e algo para beber, de álcool a água”.
Com novos contactos a surgir através do jogo, Pedro conta que se tem aproximado de pessoas com quem já não falava há “muito tempo”, mas não sabe se tal é resultado “de uma primeira fase de adrenalina social”. E também não tenta adivinhar “como vai ser depois” ou “como vamos reagir” quando, finalmente, pudermos estar na presença de quem já não vamos há muito tempo.
No entender do investigador Paulo Peixoto, essa reacção poderá ser “dual”. “Temos a nossa efusividade latina. O ‘preciso mesmo de te ver’, o tocar. Depois de algum tempo, não muito: ‘Parece que já nem te conheço’”, prevê. A estranheza poderá ser criada através “de uma espécie de efeito que foi a comunicação tecnológica”. “Corremos o risco de, nesse reencontro com os nossos próximos, os ver como se fossem um dispositivo tecnológico. Poderemos ter alguma dificuldade em reconhecer os outros porque, entretanto, fomos obrigados a uma forma de relacionamento diferente e mediado pelas tecnologias. Da mesma forma que estranhamos quando ouvimos a nossa voz gravada por um dispositivo tecnológico.” Sofia celebrou o aniversário já o isolamento social em Portugal levava quase um mês. As amigas, respeitando distâncias sociais, cantaram-lhe os parabéns da rua. “Foi mesmo estranho. Ficámos a olhar umas para as outras. Até pensei: ‘Que estranhas que elas estão… Elas não eram assim’”, recorda.
Quando o dia do reencontro chegar, é certo que Sofia continuará a dançar, mas sem receio de acordar os pais e os avós. Daniela corrigirá os erros dos seus alunos e voltará às piscinas. Diogo fotografará de novo, Rute e Pedro estarão de volta ao Rosa Imunda. E muitas chamadas, nesse dia, começarão assim: “Preciso de te ver.”