Da (ir)relevância do jornalismo
Não basta proclamar a importância do jornalismo, se este se torna irrelevante no quotidiano dos cidadãos. É também sobre isso que os jornalistas e as suas empresas devem refletir, avaliando com a máxima exigência e total disponibilidade para a mudança as suas práticas, organização interna, trabalho final.
Um dos fundadores e primeiro diretor do El País, Juan Luis Cebrián, insere num dos seus livros um curioso ditado popular espanhol: “Não digam à minha mãe que sou jornalista, prefiro que continue acreditando que toco piano num bordel.” Publicado em 2009, El pianista en el burdel constitui uma breve viagem do autor pelo jornalismo, as suas mudanças, a democracia e as então chamadas novas tecnologias. Os media tradicionais ensaiavam já as primeiras adaptações ao mundo novo que se avizinhava, porém longe de imaginarem as consequências do que os esperava: afirmação definitiva da comunicação em ambiente digital, emergência e protagonismo das redes sociais, fuga em massa da publicidade para as grande plataformas Google e Facebook que, em conjunto, monopolizam hoje mais de 80% das receitas publicitárias globais.
O diagnóstico do jornalismo antes do início da atual pandemia já era, portanto, bastante reservado, como é hábito dizer-se dos doentes em situação clínica grave e em risco de vida. Tal como o vírus que agora nos preocupa a todos e não conhece fronteiras, também a ligação do jornalismo ao ventilador se apresentava como um problema pandémico. Que, evidentemente, se agravou nas últimas semanas. Percebe-se, assim, que ser pianista de bordel parece ser mais proveitoso que jornalista.
Segundo dados publicados a semana passada pelo The New York Times, cerca de 30 mil profissionais de media norte-americanos perderam o emprego e o presidente do grupo que edita o Los Angeles Times informou que as receitas com a publicidade praticamente tinham desaparecido. Cenário idêntico por toda a América Latina, onde, de acordo com um estudo publicado pelo Knight Center, os despedimentos, a redução de salários e o encerramento de empresas de media são sinais de uma devastação sem precedentes. E o presidente da Associação Mundial de Jornais e Editores, López-Madrazo, alerta no site da organização para o paradoxo de ao aumento exponencial de leitores estar a corresponder uma preocupante “evaporação” de receitas publicitárias.
Portugal segue o mesmo rumo. Diretores dos principais órgãos de informação nacionais juntaram-se recentemente, num SOS conjunto, clamando por mais assinaturas e menos partilhas não pagas dos seus conteúdos (“pirataria”, que ironicamente fazem com frequência uns aos outros), ao mesmo tempo que várias redações seguiam para lay-off. O Governo, sensível ao problema, anunciou que vai canalizar 15 milhões de euros em publicidade institucional para os media, dos quais 25% serão destinados à imprensa regional. Por analogia à construção civil, dir-se-á que tais apoios não passam de meros pré-fabricados em zinco, que às primeiras chuvadas e rajadas de ventos vão desmoronar-se, porque o problema é estrutural.
Entendendo o jornalismo como um bem de primeira necessidade, como a água ou a eletricidade, clarifico que defendo a urgente definição e aplicação de uma política global para o setor, à semelhança, aliás, de apoios e incentivos vários dados a empresas de outras áreas de atividade económica e produtiva. Países como a França, Dinamarca, Suécia, Finlândia e Itália têm há muito políticas públicas de apoio aos media — e não consta que a independência do jornalismo e a liberdade de expressão, opinião e de informação estejam ali em risco. Desde que as regras sejam transparentes e os critérios de atribuição dos apoios, claros e sustentados, nada há a recear. Tendo, no entanto, presente que o que está em causa é o jornalismo e não outra coisa qualquer que coexista no espaço mediático.
Porém, há duas ou três coisas que boa parte dos media ditos nacionais têm de ouvir e perceber. A primeira é que estão em dívida para com muitos cidadãos, a partir do momento em que decisões hoje comprovadamente erradas levaram ao encerramento da generalidade das suas delegações e dispensa de correspondentes, o que levou ao apagamento progressivo de uma boa parte do país, do espaço mediático. O Portugal tradicionalmente centralista ficou ainda mais pequeno do que era e, com o tempo, as velhas ligações e cumplicidades entre leitores e jornais foram-se esbatendo. Estes, em busca das audiências que lhes escapavam, descaraterizaram-se, perderam a sua identidade e, desse modo, atraiçoaram também os laços de fidelização que ainda restavam com os leitores mais resistentes. Nos últimos 15 anos, um setor cujo core business é a venda de informação qualificada vem paradoxal e teimosamente depenando o seu setor de produção mais relevante — as redações —, acreditando (?) que essa descapitalização, que obviamente conduz a uma inevitável perda de valor do jornalismo que oferece, poderia por milagre traduzir-se na recuperação económica e de qualidade que continuadamente lhe escapa. A espiral viciosa, como se sabe, prossegue.
Daí que não baste proclamar a importância do jornalismo, se este se torna irrelevante no quotidiano dos cidadãos. É também sobre isso que os jornalistas e as suas empresas — as que se preocupam com a qualidade da oferta informativa que praticam — devem refletir, avaliando com a máxima exigência e total disponibilidade para a mudança, as suas práticas, organização interna, trabalho final. Claro que o problema é geral e mais amplo e há até quem veja na fragilidade atual do jornalismo um dos sintomas das fragilidades das democracias. Assim como se dirá que já antes Portugal tinha um dos menores índices de leitores de jornais por mil habitantes. Observações que, sendo certas, ajudam a perceber a gravidade do diagnóstico atual.
Como vítimas colaterais da atual pandemia, os jornalistas e as suas empresas, como sucederá com muitas outras, não vão sair incólumes disto. Donde, seria desejável que, antes de argumentarem com a relevância do seu trabalho, fossem capazes de mostrar que esta crise serviu para repensarem a sua estratégia e ação, tendo em vista fazer uma informação jornalística que seja, verdadeiramente, relevante ao quotidiano dos cidadãos. E que estes sintam, através de um renovado relacionamento e novos compromissos, que fazem parte de um processo, cuja crise está longe de ser corporativa — toca-nos a todos.
É preciso, no fundo, que o jornalista deixe de ser aquele que toca piano num bordel.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico