Avançar, mesmo sem a Alemanha
Sem coronabonds a decisão de não aplicar as regras da dívida pública será uma armadilha, pois, se não for assumida em conjunto, os juros a pagar pelos Estados mais vulneráveis serão enormes.
O Conselho Europeu do próximo dia 23 de Abril perdeu um pouco do seu drama, com o consenso alcançado no Eurogrupo, mas nem por isso é menos decisivo para o futuro da resposta às gravíssimas consequências sanitárias, económicas e sociais da pandemia de covid-19. Se o Conselho Europeu não for muito além do proposto pelo Eurogrupo, será um salto no desconhecido, que obrigará os que defendem o ideal europeu a repensar a sua posição em relação a esta União.
Perante o consenso alcançado no Eurogrupo de 9 de Abril, foi sublinhado o mérito de “existir”. Claramente essa prova de vida da União é mais do que insuficiente perante a magnitude do desafio.
O suspense sobre a unidade da União é um filme conhecido. Dramatiza-se a possibilidade de fractura maligna e, depois de muita discussão alimentada por declarações, mais ou menos repugnantes, acompanhadas por muitas negociações de bastidores, um consenso é alcançado e os dirigentes europeus suspiram de alívio: a unidade foi salva, mesmo que isso implique a incapacidade para agir de uma forma eficaz e coerente. Foi em nome dessa “unidade” que infelizmente a Hungria, pôde, em passos sucessivos, caminhar para a autocracia.
A Alemanha já não é a República de Bona, reunificou-se e hoje é uma potência emergente, um ator global, (24,6 % do produto da União) com muito mais capacidade para dizer “não” à França e, por isso, o consenso alcançado já não corresponde sempre ao interesse comum.
E se a Angela Merkel aparece, aos olhos de muitos, como uma líder confiável e moderada, a realidade é que foi sobre o seu Governo que Schäuble impôs a política de austeridade aos países da Europa do Sul e que, durante a crise das dívidas soberanas, a Grécia foi ameaçada de expulsão. Merkel continuava com a mesma imagem afável, mas será que o seu Ministro Schäuble agia sem o seu aval? A Tsipras de nada serviu a ‘compreensão’ ou a ‘amizade’ da chanceler.
É também com Merkel que os holandeses vetam o projeto de coronabonds, ou seja, que a dívida que está a ser contraída por todos, seja garantida por todos. Em suma, vetam que a União seja mais do que um mercado, que seja um verdadeiro projeto político.
Sem coronabonds a decisão de não aplicar as regras da dívida pública será uma armadilha, pois, se não for assumida em conjunto, os juros a pagar pelos Estados mais vulneráveis serão enormes e daqui a dois anos estarão de novo com políticas de austeridade. A Alemanha e seus aliados também se opõem à proposta francesa de um fundo de emergência europeia - que se aproxime do americano, na casa dos milhões de milhões de euros. Sem as transferências para fazer face à depressão económica que vamos viver, talvez mesmo pior do que a vivida nos anos 30 que permitiu a emergência do fascismo, veremos a extrema-direita chegar ao poder não só em países do Sul da Europa, mas também do Norte, que se considera moralmente superior.
Quem aparece como o mau da fita é o Governo holandês, mas alguém pensa que a Holanda seria capaz de fazer tanta mossa à União Europeia, se tivesse a oposição da Alemanha? Esperar pela Alemanha é como esperar por Godot, quer venha ou não.
A carta assinada por nove Estados da União, entre os quais a França, a Itália, a Espanha - três das quatro maiores economias do Euro, 39,8% do produto da UE - e Portugal, é uma boa notícia. A França é membro permanente do Conselho de Segurança da ONU e a única potência nuclear da União Europeia.
Os nove, no caso de impasse no Conselho, deveriam avançar com uma iniciativa de cooperação, em articulação com as outras instruções da União, para mutualizar a sua dívida. O precedente é o mecanismo europeu de estabilidade que teve a bênção do Tribunal de Justiça. Mostrarão à Alemanha que podem avançar sem ela, se a tanto forem forçados. Será possivelmente a única forma de impedir que a Itália, onde Salvini espera pela sua vez, abandone a União e siga o caminho autocrático da Hungria.
Os nove deveriam ir além do debate sobre os meios financeiros e mostrar que a sua utilização será ao serviço de uma nova política, intransigente nas questões democráticas e socialmente mais justas, em suma um projeto de refundação da União Europeia. Deveriam apresentar um programa solidário para enfrentar a pandemia e condicionar o programa de relance da economia, inspirado no New Deal de Roosevelt, para combater as desigualdades e os desafios sociais, sanitários e ecológicos atuais, ou seja um Green New Deal.
Uma Europa confinada, mas aberta ao Mundo, que fizesse do ideal da humanidade comum o seu credo e do multilateralismo o meio da acção para a proteger seria um horizonte em que, neste momento de angústia sobre o futuro, a maioria dos cidadãos se reveria.
Sendo a Alemanha um país democrático com fortes correntes europeias e federalistas, a ousadia de tal projeto seria recebida com entusiasmo por muitos.
Tal projeto é uma Utopia, sem dúvida, mas uma utopia realizável. As grandes utopias surgem quando a imaginação humana é estimulada a procurar soluções para as grandes tragédias, como a Comunidade Europeia, imaginada em plena distopia da II Guerra Mundial.
Como Havel disse “sem sonhar com uma Europa Melhor, não teremos uma Europa melhor”.
Fundador do Fórum Demos