Ter certezas num “festival de incertezas”?
A confusão que se estabeleceu em muitas cabeças levou-as a esquecer a necessidade de preservar o essencial sobre o acessório – ou seja, a saúde e as vidas humanas sobre os rituais político-partidários.
À beira de fazer cem anos, mas com uma lucidez e uma abertura de espírito impressionantes, Edgar Morin, um dos grandes filósofos e sociólogos contemporâneos, afirmava ontem numa entrevista ao Le Monde que a pandemia da covid-19 trouxe-nos “um festival de incertezas”: “não estamos seguros da origem do vírus” nem sabemos ainda “as mutações que sofreu ou poderá sofrer ao longo da sua propagação. Não sabemos quando a epidemia regredirá ou se o vírus permanecerá endémico. Não sabemos até quando e até que ponto o confinamento nos irá sujeitar a impedimentos, restrições, racionamento”. Além disso – acrescenta Morin – “não sabemos quais serão as consequências políticas, económicas, nacionais e planetárias de restrições provocadas pelos confinamentos. Não sabemos se devemos esperar o pior, o melhor, ou uma mistura dos dois: caminhamos para novas incertezas”.
Mas as incertezas não impedem Morin de encarar esta terrível provação como um desafio a construir um mundo diferente daquele onde “a prevenção e a precaução foram sacrificadas à rentabilidade e à competitividade”. Esta crise “deveria abrir os nossos espíritos, há longo tempo confinados no imediato, o secundário e o frívolo, para o essencial: o amor e a amizade no nosso desenvolvimento individual, a comunidade e a solidariedade dos nossos “eu” em “nós”, o destino da Humanidade de que cada um de nós é uma partícula. Em suma, o confinamento físico deveria favorecer o desconfinamento dos espíritos”.
Podemos, é certo, questionar o lirismo utópico de Morin, mas ele é decerto mil vezes mais estimulante do que as polémicas gratuitas acerca dos prazos do fim do confinamento – sobre os quais, de resto, ninguém tem certezas – ou o nervosismo que se instalou, nomeadamente entre certos comentadores encartados, sobre os riscos do unanimismo em torno do estado de emergência e a ausência de debate político (que ameaçariam a democracia ou estimulariam a que se sacrificasse a segurança em detrimento da liberdade, como acontece nos estados autocráticos e totalitários).
A confusão que se estabeleceu em muitas cabeças levou-as a esquecer a necessidade de preservar o essencial sobre o acessório – ou seja, a saúde e as vidas humanas sobre os rituais político-partidários ou meramente ideológicos, juntando o PCP aos neo-liberais da IL, invocando essa outra emergência que é a recuperação da actividade económica. Ora, por maior que seja o desejo dessa recuperação, ela estará necessariamente condicionada pelo calendário das incertezas sobre a evolução da pandemia que ninguém se mostra ainda capaz de controlar em lugar nenhum do mundo. O regresso à normalidade poderá efectivamente acontecer quando ainda enfrentamos tantas incógnitas de um fenómeno que, embora eventualmente em queda, ameaça ressurgir numa nova vaga devastadora? É assim que a auto-ilusão voluntarista se pode transformar na maior aliada das catástrofes.
A palavra mágica da retoma económica continua refém dessas incertezas, por mais proclamações que se façam no sentido inverso. Daí também a urgência em reflectir sobre as razões que levaram uma pandemia apenas com alguns meses de propagação a ter um efeito tão demolidor sobre as estruturas da economia global.
Não será porque essas estruturas – conjugando o neo-liberalismo e o capitalismo de Estado – se mostraram demasiado frágeis na sua resiliência a um inesperado surto epidémico e há conclusões urgentes a extrair de tudo isso? Ou a mera palavra de ordem de regresso à “normalidade” económica basta para apagar aquilo que se tornou uma gritante evidência? Como ter certezas num “festival de incertezas”? Valha-nos a capacidade de reflectir sobre as lições desta crise e, como diz Morin, deixarmo-nos estimular pela autonomia e inventividade que ela nos trouxe para pensar um mundo novo, uma nova economia e uma nova política.