Morreu o cravista Kenneth Gilbert, investigador pioneiro da música barroca
Músico canadiano tinha 88 anos e sofria de Alzheimer. Participou na Festa da Música dedicada a Bach em Lisboa, em 2000, e foi professor de Marco Magalhães, director dos Músicos do Tejo.
O cravista e musicólogo canadiano Kenneth Gilbert morreu na quinta-feira, em sua casa, no Québec, aos 88 anos, noticiou a revista espanhola Scherzo, citando o músico e seu antigo aluno Yago Mahúgo.
Investigador de música antiga para instrumentos de tecla, Gilbert foi um dos pioneiros na divulgação de compositores do Barroco francês, como François Couperin e Jean-Henri d'Anglebert, de quem resgatou muitas das suas obras, mas também um dos intérpretes do alemão Johann Sebastian Bach e do italiano Domenico Scarlatti, mais elogiados pela crítica.
Professor no Conservatório de Música de Paris, Kenneth Gilbert teve entre os seus alunos o cravista português Marco Magalhães.
Nascido em Montréal, em 16 de Dezembro de 1931, Gilbert iniciou os estudos de órgão com Conrad Letendre e, mais tarde, de piano, com Yvonne Hubert, no Conservatório de Música do Quebeque.
Aos 22 anos, em 1953, venceu o Prix d'Europa, o que lhe permitiu estudar em Paris com a compositora, musicóloga e pedagoga francesa Nadia Boulanger e com o compositor e organista Maurice Duruflé. Na capital francesa, onde se fixou e viveu grande parte da sua vida, teve ainda como mentor o cravista italiano Ruggero Gerlin, ex-discípulo da pioneira Wanda Landowska.
Na década de 1960, Kenneth Gilbert ousou fazer a edição integral da obra para tecla de François Couperin (Heugel), congregando todas as peças dispersas, a que se seguiu o seu trabalho sobre as 555 sonatas de Domenico Scarlatti, músico da corte portuguesa e da corte espanhola, numa investigação que teve então o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do Canada Council.
Numa altura em que a investigação sobre as expressões musicais anteriores ao romantismo, e sobre as especificidades da sua interpretação, dava os primeiros passos, Gilbert arriscou ainda coligir as obras de Jean-Henri d'Anglebert e de Girolamo Frescobaldi. Foi também um dos primeiros intérpretes a abordar as Variações Goldberg, de Bach, como uma obra por si mesma e não um conjunto de exercícios, o que ainda acontecia, entre o final dos anos de 1950 e a década seguinte.
A par do trabalho de investigação e recolha, Kenneth Gilbert iniciou a carreira de intérprete, dando o primeiro recital em Londres, em 1968. O sucesso ficou, porém, definido com as suas gravações em disco, surgidas a partir da década de 1970, publicadas primeiro pela independente Harmonia Mundi e, depois, pela Archiv, selo alemão da Deustche Grammophon, para a música antiga.
Os seus discos de música francesa dos séculos XVII e XVIII, e a sua interpretação das principais obras de Bach para cravo (Variações Goldberg, Suites Francesas, Suites Inglesas, O Cravo Bem Temperado e A Arte da Fuga) obtiveram classificações máximas de revistas especializadas como a Gramophone e a Diapason, a antiga Monde de La Musique e Clássica.
Gilbert foi, com o britânico Trevor Pinnock e o dinamarquês Lars Ulrik Mortensen, um dos protagonistas da gravação dos concertos para cravo, de Bach, com a orquestra The English Concert, que marcou a abordagem da música concertante do compositor alemão na década de 1980.
A actividade de Kenneth Gilbert como concertista manteve-se até ao início dos anos 2000. Foi um dos intérpretes das Folles Journées de Nantes e da primeira Festa da Música dedicada a Bach, em 2000, quando se assinalavam os 250 anos da morte do mestre de Leipzig.
Com uma actividade pedagógica constante ao longo da carreira, Kenneth Gilbert foi professor dos conservatórios de Paris e do Quebeque, e das Universidade McGill e Laval, no Canadá. Foi também um dos principais mestres do Mozarteum, de Salzburgo. Entre os seus alunos encontram-se alguns dos cravistas e pianistas mais destacados pela crítica internacional, nos últimos 50 anos, como Scott Ross, Olivier Baumont, Pascal Dubreuil, Emmanuelle Haïm, Sébastien d'Herin, Davitt Moroney, Mario Raskin, Ludger Rémy, Aline Zylberajch e Jos Van Immerseel, além do português Marcos Magalhães, director da orquestra Os Músicos do Tejo.
Gilbert foi distinguido com o Prémio Calixa-Lavallée, em 1981, feito oficial da Ordem do Canadá, em 1988, e eleito para a Royal Society do seu país. Era membro honorário da Royal Academy of Music, em Londres, e Oficial da Ordem das Artes e das Letras de França.
O cravista padecia de Alzheimer. A revista Scherzo escreveu no seu obituário: “Levava anos dessa terrível doença que primeiro rouba a memória e depois leva a alma, antes de arrebatar a vida”.