Com o perigo à espreita, devemos vigiar os mais novos online?

A UNICEF diz que monitorizar demais põe em risco o direito dos mais novos à privacidade e à liberdade de expressão, mas para alguns pais deixar os filhos sozinhos na Internet não é opção.

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Fernando Veludo

Obrigadas a aulas virtuais e sem hipótese de falar com os amigos longe de um ecrã, as crianças estão mais expostas aos riscos do mundo virtual. Esta semana, a UNICEF alertou para o aumento de contactos de predadores sexuais, acesso a desinformação online e comportamento de risco entre adolescentes, mas a organização frisa que monitorizar os passos dos menores cria ainda mais limites à liberdade. Para alguns pais, porém, deixar os filhos sozinhos na Internet não é opção.

“Vejo problemas todos os dias. Há crianças a dançar sugestivamente nas redes sociais, e videoconferências entre professores e alunos interrompidas por adultos que pedem às crianças para se despir”, partilha com o PÚBLICO Sandra Gegaloto, 45 anos, professora de secundário e mãe de duas meninas de 10 e 12 anos. “As crianças já passavam muito tempo na Internet, é verdade, mas também são muito ingénuas. Partilham e confiam demasiado. Esquecem-se que toda a gente está a ver.” 

Embora a professora evite limitar o tempo das filhas na Internet — “Precisam do ecrã para aulas das 9h às 16h30 e depois é normal que queiram brincar e falar com os amigos” —, Sandra Gegaloto está atenta a todas as comunicações. “Os emails delas caem directamente na minha caixa de entrada, vejo com regularidade o histórico e falo com elas sobre coisas problemáticas que vejo”, explica. “Não acho que seja controladora, sou atenta. Deixo-as falar com os amigos, mas não as deixo sozinhas nas redes sociais. Vejo vídeos de crianças em toalha no TikTok e estou certa que os pais não sabem.”

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O smartphone é usado para aprender, falar com os amigos e jogar DANIEL BECERRIL/Reuters

Apesar de só ter surgido em 2017, a aplicação chinesa TikTok (pensada para maiores de 13 anos) está entre as mais populares da última década, particularmente junto dos mais novos. O objectivo é partilhar vídeos virais de alguns segundos — a tendência mais recente inclui gravar a reacção ao beber um copo cheio de noz-moscada e água. Desde Fevereiro, os pais podem restringir o conteúdo que os filhos vêem e as mensagens que recebem. Para o fazer, porém, têm de ter uma conta na plataforma e saber como a utilizar. O mesmo se aplica à aplicação do Facebook para crianças

O nível de literacia em Portugal pode ser um desafio, com o ministro da Educação português a reconhecer, em 2018, que conhecimentos básicos de literacia digital apenas chegavam a 53% da população e que apenas 3% eram especialistas em tecnologias de informação e comunicação.

Há empresas que prometem resolver o problema, com aplicações que limitam e monitorizam automaticamente todas as aplicações que os mais novos usam. Algumas estão disponíveis gratuitamente, outras como a Kaspersky Safe Kids e o Norton Family, desenvolvidas por empresas de segurança online, funcionam por subscrição, com valores que começam nos 14 euros por ano. Convém, no entanto, ter atenção à empresa que está por detrás da aplicação, à política de privacidade, e à quantidade de dados recolhidos. Por vezes, os serviços (conhecidos como “espiões digitais) também são usados para controlar vítimas em relações abusivas.

“Um dos grandes problemas é a forma como os dados são tratados. Na Internet, com 13 anos já se pode utilizar muitas plataformas online como um adulto, mas no mundo real aos 13 anos ainda se é uma criança”, explica ao PÚBLICO Jasmina Byrne, que lidera o laboratório de investigação da UNICEF sobre os direitos das crianças na era digital. “A situação actual pode chamar a atenção sobre temas importantes. Por exemplo, o dever de empresas online apagarem a pegada digital das crianças.”

Vigiar é censurar?

Uma das questões mais debatidas no laboratório da UNICEF é o direito dos mais novos à privacidade. “Isto tornou-se crítico. Num mundo em que as crianças não podem sair para falar com os amigos, é importante garantir que podem ter conversas privadas”, nota Mário Viola, investigador do Instituto Universitário Europeu e redactor do relatório de 2017 sobre os desafios do mundo online para as privacidades das crianças e adolescentes.

“Jovens que precisam de pesquisar sobre métodos contraceptivos, podem evitar fazê-lo se souberem que os pais têm acesso ao histórico. É quase um limite ao acesso de informação”, explica Viola. “Ou se há interesses políticos diferentes em casa, um jovem pode sentir-se limitado em exprimir as suas opiniões online.”

O investigador brasileiro reconhece que é preciso atenção com os mais novos, mas diz que não existe uma idade certa para dar acesso irrestrito ao mundo online. “Gosto de comparar a liberdade para navegar na Internet com a liberdade para ir à escola ou ao cinema sozinho. Se as crianças ainda não saem sozinhas à rua, não deviam ter acesso livre e total à Internet”, partilha Viola, pai de dois rapazes, com 4 anos e 8 anos. “Cá em casa, gosto de dar alguma liberdade ao meu filho mais velho. O computador está sempre onde o posso ver, mas não estou sempre atrás do ecrã quando ele está nas aulas. Vou passando por lá e o meu filho sabe que a mãe e o pai estão atentos e que pode pedir ajuda.”

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Monitorizar os adolescentes pode limitar as pesquisas que fazem Paulo Pimenta

Mais do que restringir, é importante haver abertura para falar dos temas, defende a psicóloga clínica Raquel Carvalho, que trabalha com crianças e adolescentes na Oficina da Psicologia. “Por vezes não é fácil encontrar um equilíbrio entre o dever de supervisão e o respeito pela privacidade dos filhos”, reconhece a profissional. “Os pais devem fazê-los compreender previamente a necessidade de alguma monitorização por parte dos adultos. Monitorizar dentro do que é razoável não é espiar!"

A psicóloga ressalva, no entanto, que é importante que os adolescentes não sintam “que os pais estão constantemente a bisbilhotar”, porque tanto “uma postura desinteressada e desinformada” como uma postura “crítica e proibitiva” são riscos.

Perigos para os mais pequenos

A UNICEF não nega a existência de perigos online, sublinhando num documento recente que os menores de 13 anos (idade-limite para aceder a plataformas o Facebook ou o YouTube) podem estar a usar ferramentas que não se adequam à sua faixa etária por necessidade. No entanto, a organização nota que com o fecho de escolas generalizado em 188 países, as redes sociais e os programas de videoconferência são uma forma de as crianças estarem com amigos, familiares e pais durante o isolamento.

“É difícil afastar por completo os mais novos das redes sociais quando todos os amigos estão lá. Autorizo a minha filha a ter e a publicar no Instagram, mesmo que seja uma ferramenta desadequada à idade, porque acho que é a menos invasiva e tem um menor grau de interactividade”, argumenta Sónia Soares, psicóloga e mãe de uma menina de 11 anos. “Só que vejo e aprovo todas as fotografias que ela coloca e vamos falando sobre os riscos. Foi um compromisso que arranjámos cá em casa para ela não se sentir privada das redes sociais.”

Até agora, tem funcionado com a filha a procurar os pais sobre problemas que encontra na Internet. “Foi ela que nos alertou para o jogo Baleia Azul. Eu até recomendo alguma independência e autonomia em começar a pesquisar no Google”, diz Sónia Soares. “É preciso aprender a utilizar bem a Internet.”

O relatório mais recente da rede de investigação EU Kids Online, publicado em Fevereiro, com base em cerca de 25 mil respostas de crianças na União Europeia, nota que Portugal é um dos países onde mais crianças e jovens revelam mais confiança em lidar com riscos que encontram online. Cerca de 23% das crianças e jovens portugueses entre os 9-17 anos dizem que assistiram a situações desagradáveis na Internet como bullying, mensagens impróprias e conteúdo sexual, mas 72%, dizem saber o que fazer numa situação do tipo.

Regra geral, são poucas as restrições por parte dos pais. Quase todos os inquiridos em Portugal indicam que podem fazer uso de redes sociais (7% não tem autorização para usar), descarregar filmes ou músicas (5% não tem autorização) e usar a webcam ou a câmara vídeo do telemóvel (9% não tem autorização). Apenas um quinto dos pais usa dispositivos para bloquear ou filtrar conteúdos (22%).

A UNICEF acredita que existe uma correlação. “Os nossos estudos na área mostram que restringir demasiado a Internet impede as crianças de aprenderem a proteger a sua privacidade online”, frisa Jasmina Byrne, do laboratório de investigação da UNICEF. “Contrariamente à ideia que se tem de crianças que são ‘nativas digitais’, ninguém nasce a saber utilizar a Internet.”

Os pais devem estar disponíveis para falar sobre erros. “Muitas crianças não recorrem aos pais quando vêem ou fazem algo que talvez elas não devessem ter feito por receio que os pais fiquem chateados e lhes retirem os seus dispositivos ou acesso à Internet”, explica a psicóloga Raquel Carvalho, que recomenda aos pais “cuidado para moderarem o tom crítico” sobre problemas online. “Assim, os filhos sentem que podem desabafar com os pais e partilhar as suas preocupações mais cedo, evitando o isolamento e o segredo.”

Também é importante promover momentos longe do ecrã. “Em último caso, os tablets ficam trancados no armário umas horas”, sugere a professora e mãe de duas, Sandra Gegaloto. “Fiz isso durante o fim-de-semana para convencer as minhas filhas a apanhar um pouco de sol no nosso quintal. As capacidades digitais dos pais não são necessariamente um limite. Tem de existir abertura para falar de problemas, tem de haver regras e é preciso ter pausas dos ecrãs.”

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