A geografia da covid-19: algumas precisões
É, sem dúvida, importante divulgar informação regionalizada e apontar potenciais causas para os resultados diferenciados observados nas diversas regiões. Mas convém enquadrar estes resultados numa visão mais ampla, quer do ponto de vista conceptual, quer no que se refere ao conhecimento do território de Portugal continental.
Todos os dias, ao final da manhã, numa conferência de imprensa da responsabilidade do Ministério da Saúde, são apresentados e comentados os resultados apurados na meia-noite anterior sobre o avanço da covid-19 em Portugal. A informação disponibilizada inclui dados por áreas de intervenção das administrações regionais de saúde – Norte, Centro, Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve –, o que é positivo porque permite perceber que a incidência desta pandemia, como a de qualquer outra doença infecciosa, não é geograficamente homogénea. Quando jornalistas questionam a diretora-geral da Saúde sobre as razões dessas diferenças regionais, é respondido, e bem, que apenas estudos aprofundados poderão dar uma resposta segura à pergunta colocada. Mas ainda assim são enunciados três fatores explicativos principais: estrutura etária, densidade demográfica e total de lares de idosos existentes.
É, sem dúvida, importante divulgar informação regionalizada e apontar potenciais causas para os resultados diferenciados observados nas diversas regiões. Mas convém enquadrar estes resultados numa visão mais ampla, quer do ponto de vista conceptual, quer no que se refere ao conhecimento do território de Portugal continental.
A primeira distinção a fazer é entre exposição, suscetibilidade e vulnerabilidade. Sendo a origem do coronavírus externa ao país, o conceito de exposição define-se, numa primeira fase, em função do grau de abertura de cada território ao exterior. Por exemplo, as áreas metropolitanas, as regiões exportadoras, as regiões com dinâmicas transfronteiriças mais intensas ou as áreas que mantêm uma circulação regular de pessoas com comunidades emigrantes (neste caso, da Europa) estão mais expostas à possibilidade de importação de vírus. Mas as características de cada um desses tipos de territórios são diferenciadas sob muitos pontos de vista, das características sociodemográficas e habitacionais das populações que aí residem à dotação de serviços de saúde. Assim, podemos imaginar duas áreas com idêntico grau de exposição a focos externos da pandemia mas que, tendo suscetibilidades diferenciadas, revelam níveis de vulnerabilidade distintos.
No sentido oposto, e apesar de as pessoas com mais de 70 anos corresponderem a um grupo de risco reconhecido pela OMS e confirmado pelos resultados de países onde a pandemia se fez sentir mais cedo e também em Portugal, uma região com uma estrutura demográfica muito envelhecida (portanto, potencialmente muito suscetível), mas pouco exposta ao exterior (internacional e mesmo nacional), pode revelar-se pouco vulnerável. Em suma, a vulnerabilidade de cada região – neste caso, medida através da incidência de casos de infeção e da sua gravidade – são o resultado do jogo de duas componentes – exposição e suscetibilidade – que pode variar ao longo do ciclo epidemiológico, sobretudo à medida que a exposição externa vai sendo mais controlada (encerramento seletivo de fronteiras, cancelamento de voos, etc.).
Esta última observação permite realçar uma outra distinção: numa segunda fase da pandemia, a exposição passa a definir-se sobretudo em função de focos internos através de dois tipos de difusão, uma por contiguidade física e outra por interação funcional. A primeira ocorre a partir da expansão em mancha de óleo dos focos preexistentes em direção a áreas e concelhos vizinhos, baseada em movimentos pendulares casa-trabalho, cadeias de abastecimento, enfim, todo o leque de interações físicas que famílias, empresas e outras entidades com uma localização relativa próxima mantêm entre si. É o que sucede, por exemplo, nas áreas metropolitanas ou nas áreas de industrialização rural dispersa. A segunda, difusão por interação funcional, envolve as cidades de média dimensão (em geral, capitais de distrito). Estas aglomerações urbanas, pelo tipo de serviços especializados que possuem (universidades e politécnicos, hospitais regionais, equipamentos públicos de nível supramunicipal, etc.) e pelos grupos sociais que aí residem (com maior mobilidade), mantêm uma relação significativa quer com as áreas mais expostas internacionalmente (e que estiveram na primeira linha da importação de casos infetados), quer com concelhos das áreas rurais.
À luz deste enquadramento, é agora mais fácil reinterpretar quer as diferenças regionais, quer a pertinência dos três fatores explicativos acima invocados: estrutura etária, densidade demográfica e total de lares de idosos existentes.
Os dados disponíveis, apesar de todas as dúvidas que suscitam no que se refere à sua efetiva cobertura e fiabilidade, permitem identificar quatro questões relevantes.
Em primeiro lugar, não são as regiões ou concelhos com uma estrutura demográfica mais envelhecida que revelam um maior número de infetados, tanto em valor absoluto como relativo. Pelo contrário, a haver uma relação generalizada (o que merece sempre a maior prudência) ela aponta para que seja nas áreas com uma estrutura etária mais jovem que, muitas vezes, se verifica uma maior incidência da covid-19. Ou seja, o grupo etário com mais de 70 anos é efetivamente um grupo de risco, mas uma área com uma população muito envelhecida não é necessariamente uma área de risco.
Em segundo lugar, a densidade populacional, por si só, não se associa de forma relevante com o grau de incidência da covid-19. Áreas com densidades demográficas muito distintas podem ter taxas de incidência relativamente semelhantes e superiores à média. Simetricamente, áreas com densidades idênticas podem revelar uma presença muito diversificada de habitantes infetados. De facto, sob a designação genérica “densidade demográfica” escondem-se dois aspetos distintos: grau de urbanização e tipo de povoamento. Claro que nas cidades, grandes e médias, a densidade demográfica é maior e, por isso e sobretudo pelo seu modo de funcionamento enquanto espaços de estudo, trabalho, consumo e lazer, a interação pessoal, direta e indireta, é mais intensa. A difusão comunitária, quer por transmissão direta, quer através do uso de superfícies comuns, tende, pois, a ser mais elevada do que a média. Mas o tipo de povoamento também é relevante. Em áreas de povoamento difuso e de pequena propriedade, onde se misturam num mesmo território funções residenciais e atividades agrícolas e industriais, os contactos sociais são igualmente densos. Pelo contrário, em áreas com povoamento concentrado, caracterizado por povoações relativamente isoladas e maioritariamente habitadas por idosos com fraca mobilidade, o potencial de difusão comunitária é muito menor. Ou seja, a densidade demográfica apenas possui poder explicativo nos casos extremos (cidades ou territórios com um elevado grau de despovoamento), pelo que, por si só, esconde mais do que esclarece.
Em terceiro lugar, a questão dos lares de idosos. A um nível micro, e correspondendo estes equipamentos a uma concentração de idosos, eles são, naturalmente, locais de risco. Mas os casos mais graves podem ocorrer em contextos territoriais muito distintos, e resultam de uma conjugação de fatores internos e externos a cada um dos lares. Parece difícil aceitar a hipótese – mas apenas estudos aprofundados o poderão confirmar ou infirmar – de que existe uma relação entre o total de lares de idosos e o grau de incidência de infetados e mortos ao nível regional.
Finalmente, os mapas por concelho disponibilizados diariamente pela DGS, independentemente das limitações que poderão ter como atrás se salientou, aconselham alguma prudência quando se comparam dados de diferentes regiões. Sobretudo nas que têm uma configuração transversal ao país – as regiões Norte e Centro –, as diferenciações internas são tão significativas que dificilmente tem sentido falar das regiões como um todo. Deste ponto de vista, a região Norte é particularmente interessante, já que os resultados globalmente elevados apenas são compreensíveis se considerarmos que existem vários Nortes particularmente expostos e suscetíveis: a área metropolitana, com as suas franjas suburbanas mais pobres; as áreas de industrialização difusa, sobretudo do Vale do Ave; as cidades médias (Viana do Castelo, Braga, Guimarães, Vila Real, Bragança); os concelhos junto à Galiza, o troço da fronteira luso-espanhola com uma dinâmica transfronteiriça mais intensa; e Trás-os-Montes, com uma forte relação com comunidades emigrantes de vários países europeus (desde o regresso de portugueses despedidos recentemente ao vaivém de trabalhadores da construção civil). Dizer que a região Norte tem valores mais elevados porque “por acaso” alguém veio infetado de uma feira no Piemonte, a região italiana com maior incidência da covid-19, é não entender que estes vários Nortes conciliam, ainda que em graus diferenciados, uma forte exposição externa e uma suscetibilidade local elevada, ou seja, um significativo potencial de vulnerabilidade em relação a esta ou a qualquer outra doença infecciosa. Os mapas por concelho diariamente disponibilizados pela DGS mostram ainda que, no caso da região Centro, o contraste entre os municípios do litoral e do interior é tão acentuado que os totais regionais têm um valor igualmente enganador.
Será, então, que não vale a pena dar atenção aos valores regionais e municipais diariamente divulgados pela DGS sobre a evolução da covid-19? Muito pelo contrário. Pelo que revelam e pelas dúvidas e questões que suscitam, esses dados abrem mais uma janela de observação para conhecermos e compreendermos melhor não só a pandemia, mas o próprio país na sua diversidade territorial. Dados fiáveis ao nível municipal e estudos aprofundados baseados em evidência empírica permitirão no futuro conhecer as várias geografias da exposição, suscetibilidade e vulnerabilidade a doenças infecciosas, replicando os avanços científicos alcançados na última década no domínio das alterações climáticas e seus impactos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico