Estaremos realmente todos no mesmo barco?
É, desde sempre, muito importante não estigmatizarmos as reacções emocionais e a doença mental. Podemos desenvolver uma mentalidade que nos vocacione a estar mais atentos ao nosso próximo, mais disponíveis para ouvir as suas preocupações e anseios e, assim, aliviar o impacto psicológico desta pandemia.
No contexto da actual pandemia recordo as palavras de G.K. Chesterton: “Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso, e devemos uns aos outros uma terrível lealdade.”
Atravessamos, sem dúvida, um mar revolto e assustador e o nosso sucesso depende, efectivamente, de uma lealdade terrível na acção conjunta do cumprimento das medidas de contenção da propagação deste vírus. Mas, estaremos realmente todos no mesmo barco?
Quanto mais me questiono e reflicto, mais convicto é o “não” que me surge como resposta. Afinal, esta pandemia atingiu a sociedade no exacto ponto em que se encontrava – onde alguns estavam mais protegidos e preparados do que outros. Atrevo-me, por isso, a dizer que não, tal como antes desta “tempestade”, não estávamos todos no mesmo barco. Há quem siga no seu navio cruzeiro e quem atravesse em navios de guerra prontos para a batalha, mas há também quem tenha apenas uma simples canoa ou até siga sozinho, a nado.
Embora a covid-19 seja hoje a preocupação central do SNS, as outras doenças não deixaram de existir nem de necessitar de tratamento adequado. Num momento em que os recursos são (re)direccionados para o combate ao novo coronavírus e o contágio dos profissionais reduz as equipas, a prestação dos restantes cuidados de saúde corre o risco de ficar comprometida. Serão, talvez, estes os danos colaterais desta “guerra”.
Entre os mais vulneráveis, estão aqueles que sofrem de uma doença mental. Diz-nos a evidência que momentos de maior stress (como é, sem dúvida, uma pandemia) podem espoletar descompensações destas doenças. Na verdade, ninguém é imune à adversidade do tempo que atravessamos. O isolamento social, o confinamento no domicilio e a imprevisibilidade do futuro contribuem naturalmente para aumentar os níveis de ansiedade da população.
Sentimentos de angústia, revolta, irritabilidade poderão ser frequentes e, até certo ponto, reacções normais às circunstâncias que enfrentamos. No entanto, uma parte de nós poderá vir a ter sintomas mais graves ou persistentes e necessitar de cuidados especializados de saúde mental.
A tudo isto se acrescenta o receio de procurar os serviços de saúde a que nos pedem para não recorrer a menos que seja estritamente necessário. Em condições normais, muitos destes quadros seriam tratados nos cuidados de saúde primários, mas também esses estão agora, em parte, dedicados ao tratamento da covid-19. Todas estas variáveis podem traduzir-se em algum atraso na procura de ajuda e, consequentemente, no diagnóstico e tratamento da doença mental.
Também os profissionais de saúde, das forças de segurança e todos aqueles que asseguram os serviços essenciais nesta crise, se encontram expostos a elevados níveis de stress, trabalhando em ambientes de grande pressão e risco, muitas vezes afastados das famílias e sem os tempos de descanso ideais. Embora, nas últimas semanas, tenham sido apelidados de heróis, todos eles são humanos e, portanto, vulneráveis. Urge proteger não apenas a sua saúde física, mas também a sua saúde mental, ajudando-os a lidar com os medos e incertezas que também são obrigados a enfrentar.
Mas como pode o SNS cuidar da saúde mental dos portugueses neste momento em que se encontra especialmente ameaçado? A verdade é que as respostas escasseiam de forma global e nesta área são também limitadas. Muitas vezes tida como o “parente pobre” da medicina, alvo de estigma e de políticas de reduzido investimento, a saúde mental é, sem dúvida, um dos pontos mais frágeis do SNS e torna-se premente que, no meio desta luta, não seja esquecida e descurada por forma a evitar maiores danos futuros.
Não só na luta à covid-19, a solidariedade e lealdade da comunidade são capazes de fazer a diferença. É, desde sempre, muito importante não estigmatizarmos as reacções emocionais e a doença mental. Podemos desenvolver uma mentalidade que nos vocacione a estar mais atentos ao nosso próximo, mais disponíveis para ouvir as suas preocupações e anseios e, assim, aliviar o impacto psicológico desta pandemia. Ter oportunidade de falar dos nossos medos e incertezas pode fazer a diferença. Existem diversas linhas de apoio psicológico a que podemos e devemos recorrer se necessário. Manter um estilo de vida e uma rotina saudáveis são também algumas das recomendações da OMS que nos podem ajudar a manter uma boa saúde mental.
É essencial estarmos atentos àqueles que já antes viviam com uma doença mental e incentivar a manutenção do seu acompanhamento e a busca de uma ajuda adequada em caso de agravamento. Os serviços de psiquiatria e saúde mental continuam em funcionamento e à distância de um telefonema, tendo muitos deles criado as suas próprias linhas de apoio destinadas aos doentes e aos seus cuidadores.
Por fim, não esqueçamos quem está no terreno. Quem coordena os serviços deve estar atento ao estado emocional dos seus colaboradores, disponível para ouvir as suas preocupações e apto a organizar equipas de modo a que todos tenham tempos mínimos de descanso. Em diversas unidades de saúde e algumas iniciativas de abrangência nacional estão disponíveis linhas e plataformas de apoio aos profissionais.
Podemos não estar todos no mesmo barco, mas podemos fazer parte de uma só frota, mantermo-nos firmes na nossa união e buscando força na nossa diversidade para garantir que chegamos todos juntos a bom porto. Só assim poderá realmente ficar tudo bem.