Luis Sepúlveda e o polícia culto
Em 1997, o jornalista e editor de Cultura do PÚBLICO Torcato Sepúlveda (1951-2008) trouxe às páginas do jornal esta história sobre uma singular passagem do escritor chileno pelo Aeroporto da Portela, em Lisboa. Recuperamo-la esta quinta-feira, dia em que o autor de O Velho que Lia Romances de Amor morreu em Oviedo, vítima de covid-19.
O escritor chileno Luis Sepúlveda não gosta de polícias. Deve explicar-se que o autor de Mundo do Fim do Mundo (Asa) foi guerrilheiro no Chile, esteve preso e torturaram-no nos cárceres de Pinochet e foi activista do grupo ecologista Greenpeace. Basta de explicações. Luis Sepúlveda não gosta de polícias, pronto.
Um dia, Luis Sepúlveda desembarcou em Madrid, vindo da Alemanha. O romancista tem um ar de pugilista atarracado e os polícias do aeroporto aborreceram-no durante horas, desconfiando que ele seria um imigrante clandestino ou um traficante de droga disfarçado. Depois de uma série de telefonemas, deixaram-no em paz. Sepúlveda proferiu a sua conferência madrilena e, no dia seguinte, partiu para Lisboa, onde o esperavam na Casa Fernando Pessoa.
À chegada à Portela, dirigiu-se ao guichet dos cidadãos não-comunitários. Sacou do passaporte e mostrou-o. O agente abriu lentamente o passaporte, folheou-o, olhou demoradamente a fotografia, encarou o sul-americano que tinha à frente com a minúcia de um cão de fila. Sepúlveda pensou que o esperava o calvário de Madrid. Engoliu invectivas contra a puta da vida, contra os países do Sul da Europa que cada vez mais se parecem com os do Norte, e contra o capitalismo internacional, até.
O agente da fronteira, tímido, ousou perguntar: “O senhor chama-se Luis Sepúlveda?” – “Sim”, regougou. “O senhor é romancista?” – “Sou”, replicou já um tanto amaciado. “É autor de um livro chamado O Velho Que Lia Romances de Amor?” – “Sou”, disse já espantado. “Então, passe, seja feliz em Portugal, e escreva um livro sobre nós.”
O rebelde Luis Sepúlveda rendeu-se, e ainda hoje fala em comprar casa em Portugal e vir para cá viver. Não aceita explicações racionalistas. “Tropeçaste num polícia de excepção, nem todos são assim. Isto não é a utopia comunista.” Que não, que não, que um país no qual os polícias reconhecem os escritores estrangeiros é obrigatoriamente um país diferente.
Se não encontrar alguém mais convincente, ainda acaba por comprar casa no verde Minho ou no Algarve de cal! Se isso acontecer, agradeçam ao polícia culto.
Texto originalmente publicado a 15 de Abril de 1997