Esgotou-se o tempo das magias
Onde andam os sempre tão argutos homeopatas, naturopatas, especialistas nas coisas quânticas, bruxos, feiticeiros, magos, interpretadores do éter ou videntes das linhas mestras do destino?
Tiraram-nos a segurança, fugiu-nos o equilíbrio e descemos ao chão. E agora, quando olhamos para cima em busca de uma mão que nos levante, procuramos os médicos, os enfermeiros e os cientistas, pelo seu esforço e pela capacidade que só eles têm para nos reerguer e salvar. Onde andam os sempre tão argutos homeopatas, naturopatas, especialistas nas coisas quânticas, bruxos, feiticeiros, magos, interpretadores do éter ou videntes das linhas mestras do destino? Pois é. Quando chega a realidade, finda-se a novela. Este não é o seu tempo.
Na verdade, eles andam aí. Mas parece que, agora, que a coisa ficou real, que temos mesmo um bicho mau de verdade com que nos ocupar, esse luxo de primeiro mundo de louvor à medicina “alternativa” ou a airosa dispensa de vacinação deram lugar a um regaste da humildade intelectual. Não deles, está claro, mas da população. Recordámos que quem trata são os médicos, quem cuida são os enfermeiros, quem procura respostas são os cientistas. É ao seu saber que prestamos atenção. Acabou-se o recreio onde brincamos aos encantamentos, agora é hora de os adultos tomarem conta da situação. É que estudar custa. Interpretar o cunho epidemiológico de um vírus, compreender a fisiopatologia de uma doença ou laborar variantes vacinais para descortinar a sua eficácia requer anos de estudo, décadas de experiência e, porventura, séculos de conhecimento científico sobre nós acumulado. Isto não vai lá com poções de água destilada, com maçãs que vitaminam o sistema imunitário ou com o alinhamento dos chakras, perpetrado por “doutores” com o diploma tirado num quintal.
Não é giro? Eu acho giro. Então a medicina chinesa não deveria, contrariando toda uma épica ironia, ter posto cobro a este vírus, vindo ele de onde veio? Onde andam esses poderes bio-orgânico-quântico-curativos que os míopes dos médicos eram demasiado arrogantes para entender? Onde anda o vosso bastão, ou varinha, ou, até, a Força? Quando quem verdadeiramente trabalha nos fizer chegar uma vacina ou um fármaco eficaz, iremos então dissertar sobre o quão autistas nos fazem as vacinas, rejeitando tomá-las? Iremos deixar morrer os nossos avós, pais e mães, porque tal fármaco antiviral estará, como só poderia estar, cheio de químicos?
Espero, e agora dispo-me de sarcasmo, que nos lavemos na mais concentrada humildade quando nos for permitido respirar. Neste momento, em que a realidade não nos deixa desviar o olhar, desejo que continuemos a saber reconhecer onde está o conhecimento, a racionalidade e, sobretudo, a competência que, antes, tanto nos esquecemos de estimar. O pessoal médico que aplaudimos das janelas, o pessoal médico que morre para nos segurar a vida, fez-nos cair num profundo poço de reflexão. E eles são só a frente de combate. Atrás de si, estão os cientistas, mergulhados numa colaborativa rede mundial de perguntas e respostas, estão quem nos gera o alimento, quem o distribui e o vende, quem nos recolhe o lixo, estão os empresários, engenheiros e operários que, com uma criatividade inspiradora, se mutam para produzir aquilo que agora se fez urgente, estão os professores que não desistiram dos seus alunos, estão quem nos lares cuida dos nossos mais velhos, estão os pequenos comerciantes e padeiros que entregam aos idosos o que o seu resguardo os impossibilita de obter, estão os que dolorosamente ficam em casa e fazem da sua contenção, e do quanto sacrificam, o seu pequeno heroísmo. Estão todos os generosos que, aqui e ali, dão o que às vezes não podem, para outros não perderem tudo o que têm. São todos estes heróis e guerreiros que, nesta emocionante teia de solidariedade e elevação, nos curam o sentido de humanidade. Não ouçamos quem nos mente e nos vende confabulações místicas para fazer, com a nossa credulidade, um maldoso exercício de extorsão. Lembremos quem nos levantou quando o nosso mundo caiu. E saibamos erigir uma sociedade de maior razão, verdade e solidariedade, quando as dores de hoje dormirem no passado.
Se perseguimos magias, prefiro relembrar o feiticeiro Gandalf, que em dez segundos ficcionais libertou mais verdade que toda a verborreia desses bruxos tangíveis de varinha frouxa que por aí andam. Através da sua personagem, era Tolkien quem nos dizia que, na vida e nos seus desafios, “tudo o que nos cabe decidir é o que fazer no tempo que nos foi concedido”. Enquanto uns encontraram o seu chamamento na charlatanice, fingindo que só sabem que tudo sabem e enganando os mais susceptíveis, outros, os que importam, dão o seu tempo e a sua vida para salvar o mundo de cada um de nós. Esta foi a sua decisão. E este é o seu tempo, o tempo de quem sabe. O tempo de quem conta.