Confinamento em tempos de Páscoa
Estamos a viver o nosso segundo confinamento e, digo-vos, não sabemos qual deles será pior. Porque o confinamento prisional, não sendo voluntário, foi determinado pelo sentido de vida que escolhemos, pela nossa opção ideológica, porque tínhamos um inimigo à vista, que sabíamos quem era e contra o qual lutávamos.
O verbo confinar tem, entre outros, o significado de “obrigar a ficar em determinado sítio ou lugar, não podendo daí sair” (Dicionário da Academia das Ciências). É o que se passa com todos nós, neste momento, embora não tenha um significado absoluto, pois podemos sair do lugar em determinadas condições: podemos ir às compras, à farmácia, comprar o jornal e, até, passear o cão ou dar uma volta pelo quarteirão. E mesmo assim, de fugida, a falar pelos postigos, com o medo à espreita.
Mas não podemos estar com a família, beijar os pais, acarinhar os filhos e os netos, abraçar os amigos e rir com eles. Isto é, podemos fazer tudo, menos aquilo de que mais necessitamos, o que faz o nosso sentido da vida e lhe dá significado. No fundo, é uma liberdade com restrições, que nos foram impostas sem que para isso tenhamos contribuído, que escapou à nossa vontade e à lógica e sentido do viver de cada um.
Vem isto a propósito da nossa Páscoa, minha e de minha mulher, de há 55 anos. Estávamos ambos confinados, mas no sentido absoluto do termo, obrigados a ficar em determinado sítio, o Forte de Caxias, não podendo daí sair. Ali ficámos até meados de Agosto. Eu, depois de ter passado cinquenta e tal dias no total isolamento dos curros do Aljube, fui parar, juntamente com outros camaradas, a uma sala do rés-do-chão, ela e outras companheiras, a uma outra no 1.º andar. Não me lembro, nem ela, de qualquer comemoração alusiva à época.
Estamos, portanto, a viver o nosso segundo confinamento e, digo-vos, não sabemos qual deles será pior. Porque o confinamento prisional, não sendo voluntário, antes por vontade alheia, foi determinado pelo sentido de vida que escolhemos, era um confinamento que sabíamos ser possível a qualquer momento. Era um confinamento presente nas nossas vidas, que tinha sentido, consciente, determinado pela nossa opção ideológica, porque tínhamos um inimigo à vista, que sabíamos quem era e contra o qual lutávamos.
Mesmo que confinados às paredes da prisão, o que a ela nos levou mantinha-nos vivos, porque o inimigo até ali tinha rosto, no director, no chefe dos guardas e nos próprios guardas. E tínhamos amigos, os que nos acompanharam, outros feitos lá dentro, com quem acabámos por conviver quando fomos transferidos para outras salas. E riamos, jogávamos xadrez, ouvíamos música, líamos jornais e livros, conversávamos, discutíamos, fazíamos pequenas “obras de arte” com miolo de pão ou com papel de jornal humedecido. E havia aulas para os presos menos letrados.
Esta vivência, esta camaradagem, amenizava um pouco a ausência dos pais e da família, cujas visitas decorriam aos domingos. Quase que lhes podíamos tocar, só com a rede a separar-nos, com os guardas em vigilância, é certo. E era uma algazarra, com todos a falar muito alto, um som que se repercutia pelo tecto alto do parlatório. Apesar de tudo, vivíamos porque a nossa vida continuava a fazer sentido. Tínhamos vinte e poucos anos, caramba, o futuro à nossa frente, mas ainda não tínhamos construído nada.
E, agora, neste confinamento absurdo, já mais perto dos oitenta, não conseguimos encontrar sentido que nos faça crer no futuro, mesmo que curto, ao aproximarmo-nos do túnel final. Porque fomos obrigados a abdicar daquilo que criámos ao longo das nossas vidas, das filhas e dos netos, afastados do resto da família e dos nossos amigos. Porque ficámos sozinhos, mas não abandonados, numa solidão que nenhum dos modernos meios de comunicação consegue colmatar. Porque a nossa vida sofreu uma profunda alteração, sem que ainda tenhamos encontrado o seu novo ordenamento, nem sequer conseguimos vislumbrar qual será.
Na prisão sabíamos quem éramos, tínhamos uma identidade que a nossa personalidade nos conferia. Sem dúvida mais ricos, saímos conforme entrámos e encontrámos a mesma sociedade, porque a prisão foi um parêntesis, doloroso, é certo. O actual confinamento está a ter profundas implicações em todos nós e na nossa sociedade, obrigando-nos a redescobrir quem somos, individualmente e na nossa relação com os outros, e a repensar a sociedade em que vivemos. Quando isto acabar, seremos os mesmos? Encontraremos a mesma sociedade?
Vivemos no medo e sofremos da angústia do futuro.