Com lágrimas e medo, numa missão invisível: “Temos de limpar. É o nosso trabalho”

Estão expostos a um elevado risco e são mal pagos por isso. Além dos profissionais de saúde, os empregados de limpeza hospitalar andam no meio dos doentes infectados para garantir que não sai nada dali para fora. É “assustador”, garantem, mas necessário para seguir com o combate à pandemia.

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Paulo Pimenta

Filomena Simões não esquece o dia em que se viu sozinha num corredor imenso com um balde de água com lixívia e uma esfregona na mão, “toda equipada até cá acima”. Quando o primeiro doente infectado com o novo coronavírus entrasse no Hospital Curry Cabral, ela tinha a missão de seguir nas suas costas e limpar todo o trajecto para garantir que mais ninguém corria o risco de ficar infectado.

As enfermeiras ajudaram-na a equipar-se: farda, bata, luvas, máscara, óculos, touca, coberturas para o calçado. Os profissionais de saúde que não eram necessários naquele momento estavam fechados em gabinetes. Aquela área toda deserta. “Eu senti-me perdida nesse dia. Não tínhamos treino nenhum. Foi ficar sozinha num corredor imenso a fazer o trajecto do doente. E quando vejo aquele aparato, o doente ventilado... Foi horrível. Mexeu muito comigo.”

Filomena tem 61 anos, nenhum problema de saúde de maior, mas há dois anos foi submetida a um bypass gástrico e, desde então, perdeu 42 quilos. Trabalha no Hospital Curry Cabral, em Lisboa, há seis anos, mas há 25 que limpa unidades de saúde. Já viu muita coisa, garante, mas o cenário era em tudo semelhante ao que apenas vira na televisão. Hoje está na linha da frente num dos hospitais de referência no combate à pandemia. 

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Filomena Simões à saída do turno. Trabalha em limpeza hospitalar há 25 anos Daniel Rocha

Falamos de empregados de limpeza, mas não são só eles. São cozinheiros, seguranças, roupeiros, técnicos que cuidam das infra-estruturas. São milhares que, não sendo funcionários do hospital, mas sim de empresas que prestam esses serviços, estão diariamente frente a frente com uma doença sobre a qual ainda pouco se conhece. Ganham uns euros acima do ordenado mínimo e ninguém lhes paga o risco que correm. Enfrentam, por vezes, a indiferença de quem trabalha ao lado deles, mas o seu trabalho é “essencial”: sem ele, auxiliares, enfermeiros e médicos não podem trabalhar para salvar vidas. Como têm vivido estes profissionais os tempos excepcionais que atravessamos? 

“Temos de limpar. É o nosso trabalho”

O primeiro doente chegou ao Curry Cabral há mais de um mês. “Nas primeiras semanas foi complicado. Quando entrava o coração batia perto da boca, aquela sensação de que qualquer coisa me ia pegar, a adrenalina subia, eu chorava não sei porquê... chorei muito nos primeiros dias.” Desde então, Filomena foi-se habituando à nova rotina, imposta por uma realidade ainda estranha, ainda que o “medo”, “os nervos à flor da pele” estejam lá sempre. “Tem sido complicado, mas agora já tenho encarado as coisas de outra maneira, com mais firmeza.”

Filomena Simões é uma das responsáveis por limpar a unidade de cuidados intensivos daquele hospital, que acabou por ser adaptada para receber doentes com covid-19, conta. Faz o turno das 7h às 15h, durante o qual cuida das áreas onde estão “à volta de dez, 12 doentes, o que requer muito trabalho”. Entra dentro dos quartos, limpa toda a área onde o doente está. Sempre protegida com touca, máscara, óculos, luvas, protectores de calçado. “Entramos e limpamos toda a área. Tiramos o lixo, limpamos o chão, limpamos o pó. Limpamos à volta da cama do doente. Temos de limpar. É o nosso trabalho.”

Fardar e desfardar tornou-se quase um ritual, com regras muito precisas. Para entrarem nos quartos dos doentes precisam de se equipar. “Não estávamos habituadas a isso”, conta Paula Pires, empregada de limpeza no Hospital de Santa Maria, outra das unidades de referência no tratamento da doença.

A farda do costume, uma camisola e umas calças, é agora sobreposta por muitos outros equipamentos. “Ainda hoje entrei em vários quartos e tive de vestir duas batas, dois pares de ‘pézinhos’, uma touca, uns óculos e uma máscara bico de pato.” O acto despir é mais complicado, não pode ser de qualquer maneira. 

Antes de sair do quarto tem de retirar uma das protecções de calçado e pôr esse pé na parte de fora e repetir o processo para o outro pé. Depois, “com jeitinho, ir tirando as roupas em camadas”, descreve a empregada de limpeza. “É muito diferente. Até a maneira de tirarmos os lixos.” Tudo é feito com cuidados redobrados, com os conselhos que médicos e enfermeiros lhes vão dando. 

O Sindicato dos Trabalhadores dos Serviços de Portaria, Vigilância, Limpeza, Domésticas e Actividades Diversas (STAD) tem alertado para a falta de equipamentos de protecção individual para as empregadas de limpeza hospitalar. No entanto, nenhuma das trabalhadoras com quem o PÚBLICO falou se queixou de falta de equipamento ou de material de limpeza. Nem da falta de pessoal.

Segundo as contas do sindicato, entre os cerca de 35 mil empregados de limpeza que existem no país, 4500 dedicam-se à limpeza hospitalar. Ganham mais dez euros do que uma empregada de limpeza regular — com contrato a tempo inteiro —, por trabalharem em ambiente hospitalar, fixando esse valor nos 648 euros de salário base. E ninguém lhes paga o risco que correm. Filomena diz que ganha 2,70 euros por um “subsídio de risco”, mas este não existe para todos. O STAD esclarece que o subsídio de risco não está previsto no contrato colectivo de trabalho. Resulta sim de “acordos” que foram sendo feitos com empresas. “É uma miséria, e não paga o risco. Foi só uma maneira que arranjámos para que as empresas pagassem mais aos trabalhadores”, diz Vivalda Silva, coordenadora do STAD. 

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As equipas têm-se mantido ou então têm sido ajustadas. Há serviços que deixaram de funcionar para ser dada prioridade ao tratamento da covid-19 e as funcionárias da limpeza reafectadas a outras áreas. No Santa Maria, a empresa responsável pela limpeza, Safira, está a colocar mais pessoas, que Paula prevê ser por causa das férias. “As mulheres trabalham o ano todo, também precisam de férias”, diz.

“Um mundo vazio lá dentro”

Paula Pires tem 55 anos, é diabética e hipertensa. Sabe que está em risco, mais do que outros, mas este trabalho é o seu sustento, por isso não pode largá-lo. Trabalha no Santa Maria há 15 anos. “Já vi muita coisa, mas esta é mais assustadora.”

Em todas as conversas há uma palavra que vão repetindo: assustadora. O vírus SARS-CoV-2 meteu-se no corpo das pessoas e assustou tudo à sua volta. O Santa Maria era “um hospital alegre”, diz Paula. Agora, “é um hospital fantasma. Não se vê ninguém.” Há poucas consultas, não há visitas para os pacientes internados. “É um mundo vazio lá dentro.”

Paula trabalha de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h, mas há vários turnos para garantir que a limpeza é feita 24 horas por dia. Para já, apesar de expostas ao vírus, ainda ninguém da equipa de limpeza do Santa Maria ficou infectado, diz Paula. 

Quando o primeiro turno do dia chega ao Hospital de São João, um pouco antes das sete da manhã, um outro está de saída. No átrio de entrada, a palavra covid-19, em letras maiúsculas e garrafais, ocupa diversos avisos e ajuda quem chega a orientar-se. Os 200 trabalhadores que garantem a limpeza daquela unidade, epicentro do combate ao SAR-CoV-2 no Porto, entram por ali, entre fitas que ajudam a formar filas, embora não as haja, e dois aparelhos de medição da temperatura corporal. A “operação covid” da Euromex, a empresa responsável pela limpeza, começa dois pisos abaixo do zero, na área técnica. 

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Ao contrário do que acontece no Santa Maria e no Curry Cabral, os trabalhadores do São João não entram em “zonas vermelhas”, limpas pelos próprios auxiliares. Mas isso não atenua a missão. De volta ao -2, onde o trabalho invisível transpira: com a farda verde-água vestida e o ponto picado, é hora de passar pelo armazém e lavandaria. Há dezenas de carrinhos de limpeza, aspiradores de líquidos e do pó, máquinas para lavagem de pavimentos, produtos de limpeza, duas máquinas de lavar e uma de secar cheias de panos e mopas, em movimento contínuo entre as 6h30 e as 22h.

Alice Caldas, 52 anos e corpo franzino, anda naqueles corredores há oito anos, depois de “muitos mais” passados numa escola. Por estes dias, diz, “a vida mudou para toda a gente” e o “sofrimento” tornou-se transversal. A ela, custa-lhe deixar a casa todos os dias, num até já angustiado ao filho de 23 anos e à mãe acamada. Não tanto pelo destino, mas pela viagem: no autocarro entre Ermesinde e o Porto, e vice-versa, ainda vê muita gente sem protecção. Despreocupada. E isso preocupa-a: “Sinto mais medo na rua do que no hospital. O perigo está lá fora.”

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Alice Caldas trabalha há oito anos no Hospital de São João Paulo Pimenta

O trabalho faz-se agora com mais produtos desinfectantes e anti-bacterianos e com formação extra, conta o director-geral da Euromex, Ricardo Gouveia, garantindo que, após um tempo de ajustamento, os equipamentos de protecção individual estão todos garantidos. O uso de máscara e luvas é obrigatório. Até agora, porém, houve “sete ou oito” casos de infecção entre os trabalhadores, todos sem gravidade. Marlene Brito, com 11 anos de casa, trabalha na área de internamento do serviço de cirurgia vascular — zona agora dedicada a doentes com covid-19 —, mas já passou também pelas urgências. Deu por si muitas vezes a olhar para as pessoas doentes nas salas de espera e a pensar no problema que teriam. “Para ir limpar um corredor, uma sala, uma casa de banho passamos por ali e olhamos. Passado um bocado, vemos a pessoa fechada numa box e perguntamos ‘Meu Deus, o que é esta pessoa tem para estar aqui fechada?’”

“Sem trabalho em equipa, não há nada”

Haja ou não pandemia, os problemas aparecem diariamente. “A gente tem de se preocupar todos os dias. Nós trabalhamos ali há muitos anos e levamos com montes de doenças. Temos acima de tudo ter muita precaução, muita limpeza e muita cabeça. Não facilitar. Nunca, nunca, nunca.”

Apesar de permanecerem em área verde, os cuidados multiplicaram-se. Os produtos desinfectantes são uma arma. Os puxadores de portas, botões do elevador ou corrimões das escadas são alvos permanentes. Desinfectados várias vezes ao dia, assim como as casas de banho usadas pelos profissionais de saúde e os vestiários, onde tomam banho e trocam de roupa. 

Tudo é para ser seguido à risca, sem facilitar, diz Marlene. “As regras têm de ser cumpridas a 100%, não pode ser a 99,9%. Nós temos família, temos amigos e contactamos com outros colegas. A qualquer momento podemos ficar infectados por um erro nosso. Não podemos facilitar.” Receio, esse, não tem. “Tenho confiança no trabalho que faço e acho que mais do que nunca a gente deve unir-se para conseguirmos vencer isto. Acho que as pessoas, mais do que nunca, são imprescindíveis no hospital. Toda a gente faz falta e é pouca para tudo.”

No final de Março, profissionais de saúde do Hospital Sant Joan de Déu Barcelona, em Espanha, dedicaram uma salva de palmas às empregadas de limpeza que os acompanham. “Hoje queremos agradecer à equipa de limpeza, segurança, cozinha e infra-estruturas, ou seja, todos os profissionais que não são de saúde e que continuam a fazer o seu trabalho em circunstâncias excepcionais por causa da covid-19”, escreveu o hospital num vídeo publicado no Twitter.

Filomena, Paula, Marlene e Alice reconhecem que a comunidade médica valoriza o seu trabalho. “Um profissional de saúde é importante porque salva a vida a um doente, um auxiliar porque cuida, dá-lhe banho, dá-lhe de comer, e uma auxiliar da limpeza porque desinfecta uma sala, uma casa de banho para que o doente não vá levar mais do que o que trouxe [para o hospital]”, nota Marlene. “Se não houver trabalho em equipa, não há nada.” com Mariana Correia Pinto