Um ano após o incêndio, obras na Notre-Dame estão paradas

As medidas de emergência para travar a covid-19 deixaram deserto o estaleiro da catedral parisiense e é cada vez menos provável que o outrora mais visitado monumento europeu possa reabrir as suas portas em 2024.

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O lockdown imposto em França para conter o surto de covid-19 paralisou os trabalhos que decorriam na Catedral de Notre-Dame MOHAMMED BADRA/LUSA
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Na passada Sexta-Feira Santa, o reitor da Notre-Dame, Patrick Chauvet, o bispo auxiliar de Paris, Denis Jachiet, e o arcebispo de Paris, Michel Aupetit, celebraram uma cerimónia restrita no interior da catedral Reuters/POOL
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O reitor da catedral guarda a coroa de espinhos de Notre-Dame, uma relíquia da paixão de Cristo, após a cerimónia de sexta-feira passada Reuters/POOL
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O arcebispo de Paris dirigindo-se ao violinista Renaud Capucon, e aos actores Judith Chemla e Philippe Torreton Reuters/POOL
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Emmanuel Macron prometeu há um anos franceses que a Catedral de Notre-Dame estaria reconstruída em 2024 CHARLES PLATIAU/REUTERS

Foi já há um ano – ao final da tarde do dia 15 de Abril de 2019 – que deflagrou em Paris o violento incêndio que deixaria a catedral fundadora da arquitectura gótica europeia praticamente reduzida a escombros. As ruínas ainda fumegavam quando Emmanuel Macron, numa primeira declaração ao país, prometia aos franceses que, num prazo de cinco anos, Notre-Dame lhes seria devolvida “ainda mais bela”. Mas um ano após a tragédia, com todos os trabalhos agora suspensos por causa da pandemia da covid-19 (França é o quarto país do mundo com mais casos confirmados), o desígnio nacional assumido pelo presidente francês parece cada vez menos concretizável.

Se o prazo que Macron propôs, acreditando que seria possível ter a catedral reconstruída em todo o seu esplendor quando Paris receber os Jogos Olímpicos de 2024, foi de imediato criticado por vários especialistas, assustados com os riscos de um restauro demasiado apressado, a verdade é que a sorte também não tem ajudado. Logo a seguir ao incêndio, percebeu-se que a dramática derrocada da flecha da catedral, que o mundo viu, em directo pela televisão, a afundar-se nas chamas, tinha poluído com 300 toneladas de chumbo fundido o interior da catedral e os solos circundantes, obrigando a morosas operações de descontaminação e limitando o número de operários na obra. E durante o Outono e o Inverno os trabalhos foram frequentemente interrompidos, já que as regras de segurança proibiam que a obra prosseguisse com ventos acima dos 40 quilómetros por hora.

Ainda antes do aparecimento da pandemia, o general que Macron pôs a dirigir as operações, Jean-Louis Georgelin, já assumira que a reconstrução propriamente dita nunca avançaria antes de 2021. Mas esperava-se que, com a chegada de tempo mais ameno, tivesse podido iniciar-se finalmente em Março a difícil e delicada tarefa de desmantelar o que resta da densa rede de andaimes que servia as obras de restauro a que a catedral vinha sendo submetida antes do incêndio. Será preciso desmontar cerca de dez mil tubos torcidos e soldados pelo fogo, o que deverá levar meses e já exigiu a construção de novos andaimes para se aceder aos anteriores. Uma missão que corresponde a uma espécie de gigantesco jogo de mikado, uma vez que é grande o risco de, ao retirar-se um tubo, outros caírem e partirem mais algum pedaço da catedral na queda.

Perante a ameaça da covid-19, Georgelin suspendeu totalmente as obras, nas quais trabalhavam diariamente cerca de 70 pessoas, mas defendendo que é preciso pensar já nas condições em que a operação poderá ser parcialmente retomada e sugerindo que se dê prioridade à desmontagem dos andaimes. Pela sua própria delicadeza, argumenta, a tarefa não envolverá muitos homens, que de resto já trabalhariam, de qualquer modo, a uma distância razoável uns dos outros.

Dotar a catedral de uma cobertura contra a chuva menos provisória do que aquela que foi colocada logo após a tragédia e retirar o entulho depositado sobre a grande abóbada de pedra que sobreviveu ao incêndio, aonde não chegam os robôs que foram usados para retirar os detritos acumulados no interior do templo, são algumas das prioridades que estavam agendadas para este Verão, mas que poderão agora vir a ter de ser adiadas. Antes de se avançar com os trabalhos de reconstrução, será ainda necessário que a equipa liderada pelo arquitecto Philippe Villeneuve termine os estudos actualmente em curso para determinar se as abóbadas estão suficientemente sólidas ou requerem obras de consolidação.

Mas há outros trabalhos mais discretos que vão prosseguindo: a minuciosa triagem e identificação dos incontáveis fragmentos de pedra, madeira ou metal já retirados dos escombros, como se faria numa escavação arqueológica, ou a limpeza de vitrais que resistiram milagrosamente às chamas, e nos quais a sujidade se acumulara literalmente durante séculos. Quando a catedral reabrir as portas, o interior será banhado por tonalidades de luz que ninguém vivo se pode gabar de alguma vez ali ter visto.

“Ainda há vida aqui”

Aos atrasos agora agravados pelo surto da covid-19 poderão começar a somar-se problemas de financiamento. Nos emotivos dias que se seguiram ao incêndio, os proprietários das principais empresas francesas anunciaram avultadas doações para a reconstrução da Notre-Dame, às quais vieram depois somar-se mais de 300 mil contributos de instituições e doadores singulares. Mas do total de 902 milhões de euros até agora prometidos, a parte que já chegou ao destino, diz o jornal católico La Croix, não chega aos 200 milhões. E o reitor da Notre-Dame, Patrick Chauvet, ainda há dias afirmava à imprensa que a factura da recuperação irá ultrapassar mil milhões de euros.

Uma estimativa que sugere haver já uma ideia clara do que irá ser feito. Nada mais longe da verdade, no entanto. Pouco depois do incêndio, Macron anunciou um grande concurso internacional de arquitectura para projectar a nova flecha da catedral, à qual gostaria de ver dado, assumiu, “um toque contemporâneo”. Até hoje ainda não se sabe se o concurso avança ou não, embora muitos ateliers de arquitectura e design já tenham divulgado as suas ideias, quer para a flecha, quer para a cobertura da catedral. Norman Foster propõe um telhado envidraçado e uma agulha de vidro e aço, o arquitecto francês Alexandre Chassang, adepto, como Macron, de uma flecha contemporânea, desenhou um pináculo fragmentado de aparência modernista, o designer brasileiro Alexandre Fantozzi concebeu uma flecha feita de um patchwork de vitrais, a dizer com um telhado idêntico, o artista gráfico Antony Séjourne imagina um feixe luminoso apontado ao céu a fazer as vezes da flecha, o designer Mathieu Lehanneur desenhou uma gigantesca chama estilizada para preservar a memória da catástrofe, o Studio Nab, de Nicolas Abdelkader, quer construir uma estufa no topo da catedral, o arquitecto paisagista Clément Willemin sugere para o mesmo local um terraço ajardinado a céu aberto, e o estúdio sueco Ulf Mejergren lança uma ideia um pouco mais arrojada: converter o telhado da catedral numa enorme piscina pública em forma de cruz e guardada por esculturas dos 12 apóstolos.

O arquitecto britânico Norman Foster propõe um telhado envidraçado e uma agulha de vidro e aço para a Notre-Dame do século XXI DR
Alexandre Chassang é adepto, como Emmanuel Macron, de uma flecha contemporânea DR
O designer brasileiro Alexandre Fantozzi concebeu uma flecha feita de um patchworkk de vitrais e um telhado a condizer DR
Em vez de uma flecha, um feixe luminoso apontado ao céu: a proposta de Antony Séjourne DR
Mathieu Lehanneur, designer, imaginou uma gigantesca chama estilizada no lugar da flecha, para preservar a memória da catástrofe DR
O Studio Nab quer construir uma estufa no topo da catedral DR
Clément Willemin, arquitecto paisagista, sugere um terraço ajardinado a céu aberto DR
O estúdio sueco Ulf Mejergren sugere que se converta o telhado catedral numa piscina pública em forma de cruz DR
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O arquitecto britânico Norman Foster propõe um telhado envidraçado e uma agulha de vidro e aço para a Notre-Dame do século XXI DR

Já o arquitecto Philippe Villeneuve, um especialista em recuperação de monumentos históricos que dirigia já desde 2013 as obras de restauro da Notre-Dame, defende que a flecha deve ser refeita de modo a ficar idêntica à que existia, e que tinha sido reconstituída ao gosto gótico pelo arquitecto Viollet le Duc em meados do século XIX. Fiel aos princípios da Carta de Veneza de 1964, que recomenda que os monumentos históricos sejam reconstruídos de acordo com o seu último estado conhecido, a opinião de Villeneuve choca frontalmente com a de Macron. E a sua insistência em defendê-la publicamente exasperou Georgelin a ponto de o general, um tanto marcialmente, ter explicado em plena Assembleia Nacional, em Novembro, que já tinha dito várias vezes a Villeneuve que “calasse o bico” (“qu’il ferme sa gueule”).

Tudo indica, portanto, que quando chegar o momento de se iniciar verdadeiramente a reconstrução da catedral pode escassear o tempo para a programada abertura em 2024, e pode o dinheiro revelar-se insuficiente, mas não faltarão decerto animadas controvérsias. E a solução institucional encontrada para gerir a operação não promete evitá-las: o general Georgelin dirige a obra, gere o orçamento e marca o calendário, mas cabe ao Ministério da Cultura o controle científico e técnico do projecto.

Enquanto se espera que a pandemia abrande e os trabalhos sejam retomados, a catedral já teve, pelo menos, uma efémera ressurreição como lugar de culto. Na passada Sexta-Feira Santa, o arcebispo de Paris celebrou em Notre-Dame, diante de uma coroa de espinhos que se salvou das chamas, e acompanhado apenas por meia dúzia de pessoas, uma breve cerimónia que foi transmitida na televisão. “Ainda há vida aqui”, disse Michel Aupetit, auxiliado pela actriz Judith Chemla, que cantou a Avé-Maria, e pelo actor Philippe Torreton, que leu poemas de Charles Péguy e Francis Jammes.

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