Trump acredita na cloroquina para tratar a covid-19, mas a ciência não
Médico francês começou onda de apoio a medicamentos que foi do Twitter para a Fox News, acabando na Casa Branca. Mesmo que não haja um único estudo que indique resultados promissores do seu uso para a covid-19.
Em tempos de pandemia sem tratamento há pressa em tentar todas as possibilidades que possam ter algum resultado. Medicamentos aprovados para outras doenças, da sida ao ébola passando pela malária, têm sido usados por vezes para tentar tratar a covid-19. Entre eles, a cloroquina e a hidroxicloroquina têm estado no centro de polémicas depois da sua promoção pelo Presidente norte-americano, Donald Trump, do Presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e de um médico que se transformou numa estrela em França, mas cujos dois pequenos ensaios clínicos não cumprem os critérios científicos necessários para serem conclusivos.
Esta semana, um ensaio clínico no Brasil foi suspenso depois de se verificarem efeitos adversos graves e da morte de alguns dos doentes sujeitos a doses mais elevadas de cloroquina. O medicamento tem uso aprovado em Portugal e é admitido o seu uso no tratamento da covid-19, mas em doses mais reduzidas.
Menções a estes medicamentos, duas versões da mesma droga, já andavam a circular na Internet mesmo antes de Trump dizer que podem ser “um factor decisivo” na luta contra a covid-19, criando expectativas de que exista um tratamento eficaz para esta nova doença, quando não existe ainda nenhum.
O diário britânico Financial Times especula que a insistência de Trump na hidroxicloroquina resulta do desespero para ter uma alternativa de tratamento, lembrando que o próprio Presidente disse: “O que temos a perder?”
Mas há algo a perder e a promoção deste medicamento teve consequências: houve uma corrida à hidroxicloroquina, levando a que comece já a faltar para os doentes para os quais é indicada e tem eficácia comprovada (artrite reumatóide e lúpus, por exemplo), há pacientes de covid-19 tratados com o medicamento a sofrer efeitos secundários graves, incluindo arritmias, que podem mesmo levar à morte. Há quem alerte ainda para outro efeito perverso: com os holofotes concentrados neste medicamento, pode haver menos atenção a outras alternativas, enumera o Washington Post.
E há ainda o risco de as pessoas tomarem o tratamento nas próprias mãos e cometerem erros fatais: um homem no Arizona morreu depois de ingerir um químico com um nome semelhante, mas que serve para limpar aquários.
O Post diz que as primeiras menções dos dois medicamentos (a hidroxicloroquina é derivada da cloroquina) nas redes sociais aconteceram por haver estudos da época da SARS em 2005 na China, com indicação de um potencial efeito dos medicamentos contra o coronavírus da altura (estudos de culturas de laboratório que nunca chegaram a ser feitos em humanos).
Twitter-Breitbart-Fox
O interesse aumentou muito mais depois de um médico francês, Didier Raoult, fazer da administração destes fármacos em doentes com covid-19 uma missão, e a publicitar com presença forte nas redes sociais.
Esta chamou a atenção de um comentador conservador norte-americano que tweetou sobre a teoria de Raoult; que foi depois objecto de um artigo no site de extrema-direita Breitbart e, a 16 de Março, uma menção na Fox News. Três dias depois de a Fox falar do assunto, Trump faz a primeira afirmação sobre o potencial do medicamento, pondo em marcha um novo pico de atenção nas redes sociais.
No Brasil, o Presidente Jair Bolsonaro também já defendeu repetidas vezes o uso da cloroquina. Esse é um dos motivos, aliás, pelo qual está em conflito aberto com o seu ministro da Saúde, que parece estar a prazo no Governo.
O problema é que o potencial sucesso de Raoult não tem bases científicas sólidas. O médico fez dois ensaios clínicos, mas num deles os pacientes que receberam o tratamento foram escolhidos por si e não seleccionados de modo aleatório; e no outro não havia, sequer, um grupo de controlo, duas condições que garantem a qualidade dos ensaios clínicos. Para Raoult, a urgência da pandemia justifica estes meios.
O médico diz também que supervisiona atentamente os doentes que recebem este tratamento, e que o recomenda para casos que não estejam já numa fase aguda.
Quando o Presidente francês, Emmanuel Macron, visitou o hospital e o médico na semana passada, um abaixo-assinado pedindo que o medicamento fosse disponibilizado em grande escala para doentes com a covid-19 tinha ultrapassado as 460 mil assinaturas.
Muitos outros médicos e epidemiologistas franceses criticaram a visita presidencial e o “showbizz” em volta do médico. Mas a onda provocada pelas afirmações de Raoult parecia não poder ser parada: segundo uma sondagem em França do instituto IFOP da semana passada, 59% dos inquiridos acham que a cloroquina é eficaz contra o novo coronavírus. Os extremos à direita e à esquerda acreditam mais na eficácia do medicamento - que chega a 80% entre o movimento de protesto dos “coletes amarelos”, diz uma notícia na revista Science.
"Atirar tudo o que se tem"
Karine Lacombe, responsável pelo serviço de doenças infecciosas no Hospital Saint Antoine em Paris, disse à Science que tanto ela como a sua equipa já receberam “ameaças físicas” por se terem recusado a prescrever cloroquina. Também contou que já viu muitas receitas falsificadas para este princípio activo.
Com o aumento da utilização do medicamento, também aumentaram relatos de reacções adversas: o organismo de supervisão de medicamentos de França indicou que em duas semanas recebeu notificações de 50 casos de doentes que desenvolveram problemas cardíacos graves durante o tratamento com hidroxicloroquina.
Enquanto isso, um estudo com cloroquina em Manaus, Brasil, com 81 doentes, foi suspenso esta semana depois de terem morrido 11 dos 81 doentes a serem tratados com este princípio activo.
A Suécia deixou de usar o medicamento por notar um aumento de efeitos secundários “significativos” nos olhos e coração dos doentes. O médico e professor na Universidade de Gotemburgo Magnus Gisslén disse ao Financial Times que acha errada “a pressa dos médicos para tratar pessoas” deste modo. “É importante que a medicina tenha base em provas.”
No mesmo artigo, o diário britânico cita Jeremy Faust, médico no Hospital Brigham and Women’s, um dos hospitais da Faculdade de Medicina de Harvard (EUA), explicando que um dos problemas é que alguns clínicos estão a tratar a covid-19 “atirando-lhe com tudo o que têm, e vendo o que acontece”. Esta estratégia, notou, não permite isolar cada tratamento e ver que medicamento funcionou melhor.
Notícia corrigida às 12h50: o grupo de controlo e escolha aleatória dos intervenientes não são os mínimos para um ensaio clínico, mas sim o padrão mais exigente de um ensaio para mostrar provas científicas.
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