Direita irlandesa deixa a rivalidade histórica de lado e une-se para (tentar) governar
Fianna Fáil e Fine Gael propõem governo de coligação, mas não têm deputados suficientes para o aprovar. Excluído o Sinn Féin das contas, objectivo é convencer os outros partidos a juntarem-se-lhe.
Depois de quase um século de disputa eleitoral pelo Governo da República da Irlanda, os dois principais partidos de direita do país decidiram pôr de lado a rivalidade e unir-se numa solução de coligação. Fine Gael, do actual taoiseach (primeiro-ministro), Leo Varadkar, e Fianna Fáil, do ex-ministro dos Negócios Estrangeiros, Micheál Martin, chegaram esta terça-feira a acordo para uma “parceria total e igualitária”, que pretende acabar com o impasse trazido das legislativas de Fevereiro e colocar um ponto final nas aspirações governativas do Sinn Féin, de esquerda.
O compromisso à direita foi colocado por escrito num documento estratégico, que se assemelha a um programa de governo, e que será discutido na quarta-feira pelos respectivos grupos parlamentares, confirmaram os partidos. Só depois de aprovado é que será oficializado pelos líderes.
Apesar de inédito, o entendimento entre os dois rivais – e representantes dos diferentes lados da barricada da guerra civil de 1922-1923 – não é propriamente inesperado. Em 2016, também num cenário de bloqueio parlamentar, Fianna Fáil e Fine Gael chegaram a acordo para permitir um governo minoritário, liderado por Varadkar. Desta vez, porém, tudo aponta para uma rotação do cargo de taoiseach entre Martin e Varadkar, apesar de não se saber em que moldes se desenrolará essa parte concreta do plano.
Ainda assim, os partidos não têm deputados suficientes para aprovar a investidura de um executivo de coligação. O Fianna Fáil tem 37 representantes – excluindo o speaker, eleito entretanto – e o Fine Gael tem 35, pelo que precisam de pelo menos mais oito parlamentares para terem a maioria dos 160 membros no Dáil Éireann (câmara baixa do Parlamento).
O objectivo passa, por isso, por seduzir outros partidos ou deputados independentes que estejam interessados em integrar um governo ou em negociar um acordo parlamentar sobre matérias concretas. Social-Democratas, Partido Trabalhista e Partido Verde já se mostraram desinteressados em pactuar com a direita, mas há mais de 20 independentes que se podem chegar à frente.
Fora destas contas está o Sinn Féin. O partido nacionalista de esquerda e antigo braço político do grupo armado Exército Republicano Irlandês (IRA) surpreendeu tudo e todos, ao ser o mais votado entre as primeiras escolhas dos irlandeses nas últimas eleições, mas acabou por eleger menos um deputado que o Fianna Fáil, por causa das características próprias do sistema de voto único transferível que vigora na Irlanda.
Para além disso, e apesar de ter focado a sua campanha em temas relacionados com o Estado social, a habitação, a educação ou a saúde, o Sinn Féin sofreu as consequências de décadas de exclusão do espaço político e mediático irlandês, devido ao seu passado problemático.
Nem Fianna Fáil nem Fine Gael aceitaram sentar-se à mesa com a líder do partido, Mary Lou McDonald – protagonista da outra notícia do dia, ao revelar que foi infectada pelo novo coronavírus –, nem o Sinn Féin conseguiu concretizar o objectivo a que se propôs há dois meses: formar uma inédita coligação “arco-íris” de esquerda.
Programa atractivo?
Para convencer os restantes partidos a apoiarem os seus planos ou a juntarem-se-lhes num governo, Martin e Varadkar apostam num programa político que pretende ser o mais abrangente e o mais atractivo possível.
Segundo o Irish Times, que teve acesso ao rascunho do documento estratégico, os dois líderes propõem um “novo contrato social”, comprometem-se a transferir fundos extra e a investir fortemente na saúde – também em resposta à ameaça sanitária –, prometem nova legislação para atenuar os efeitos da crise imobiliária e asseguram o estabelecimento de metas mais ambiciosas de redução das emissões de carbono.
Mais relevante que isso, possivelmente, é a promessa de não responderem à crise económica que se adivinha – por causa dos efeitos do combate à covid-19 – com medidas de austeridade. Um tema particularmente sensível para o Fianna Fáil, que, por ter liderado o Governo durante grave crise financeira que afectou especialmente a Irlanda, a partir de 2008, perdeu muito do seu eleitorado à conta da estratégia de cortes e de redução de salários e apoios sociais.