A última publicação do médico que alertou colegas para o vírus tornou-se num local de luto digital
A última publicação de Li Wenliang na rede social chinesa Weibo tem já mais de dois meses, mas continua a receber centenas de comentários todos os dias. Ali, muitos utilizadores fazem o seu luto e procuram algum conforto — ainda que apenas digital — em tempos de pandemia.
Muitos visitam só para dizer bom dia, boa tarde ou boa noite a Li Wenliang. Outros para dar conta da rotina durante a quarentena, e há ainda quem venha só para lhe dar em primeira mão as mais recentes notícias da pandemia. Há ainda quem use esta publicação como uma espécie de diário, onde se incluem imagens, como uma forma de desabafar numa altura difícil. Há utilizadores a relatar mortes de parentes e nascimentos de outros, dias bons e outros menos bons. “Dr. Li, hoje estou muito chateado, não sei como me ajustar a esta nova rotina”, escreve um utilizador. “O meu pai partiu hoje de manhã para um sítio de onde nunca mais pode voltar. Vim conversar consigo para ver se me sinto um pouco melhor. Você está bem por aí?”, questiona outro.
Li Wenliang foi um dos médicos chineses que tentou alertar a comunidade médica para a possibilidade de o mundo estar perante um novo vírus quando apareceram os primeiros casos de pneumonia atípica em Wuhan, em Dezembro. O médico chegou a ser investigado pela polícia chinesa por “espalhar rumores” e foi obrigado a assinar uma carta em que se comprometia a parar com as suas “actividades ilegais”. Durante o tratamento a uma mulher que não sabia que estava infectada com o novo coronavírus, Li Wenliang acabou por contrair a doença e por morrer a 6 de Fevereiro, mais de um mês depois de ter tentado alertar os colegas para um vírus desconhecido e perigoso.
Quando se soube que os seus alertas eram (afinal) verdadeiros, o médico tornou-se num herói num tempo de incerteza. E quando acabou por morrer infectado, num dos mártires da doença. Tanto que a última publicação na sua conta na rede social chinesa Weibo — aquela em que confirmava que estava infectado com o SARS-CoV-2 — se tenha tornado numa espécie de local onde milhares fazem o seu luto e procuram algum conforto, ainda que digital, em tempos de pandemia.
Nessa publicação, que tem já mais de dois meses, os utilizadores do Weibo deixaram já mais de 870 mil comentários e 3 milhões de gostos, números que não param de crescer de dia para dia. “Não consigo parar de chorar sempre que penso em todo o sofrimento e trauma que as pessoas de Wuhan sofreram”, lê-se num dos comentários mais recentes. Outro utilizador assegura ao médico que muita gente está a pensar nele neste momento, outros dizem que sentem a sua falta, muitos simplesmente agradecem.
Há muitos comentários de utilizadores aliviados pela cidade de Wuhan, isolada há mais de dois meses, ter dado esta semana mais um passo no regresso à “nova normalidade”. As autoridades levantaram as restrições à circulação dos seus habitantes abrindo auto-estradas, pontes e túneis, e permitiram a circulação de comboios, autocarros e voos domésticos.
A história de Li Wenliang
Em Dezembro, Wenliang estava a trabalhar num hospital da cidade, que se sabe agora ter sido o epicentro do surto, quando notou que pelo menos sete doentes que tinham sido postos em isolamento apresentavam sintomas semelhantes aos da pneumonia atípica, ou Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS), que entre 2002 e 2003 matou 650 pessoas na China continental e em Hong Kong. Ainda que tivessem sido registados poucos casos, nessa altura já se pensava que o surto tinha tido origem num mercado de peixe no centro de Wuhan.
No final de Dezembro, o médico oftalmologista enviou uma mensagem para um grupo que mantinha com outros profissionais de saúde a alertá-los para um possível novo vírus e a aconselhá-los a usar roupas apropriadas para evitar infecções — o que não sabia era que tinha sido descoberto um coronavírus inteiramente novo. Alguns dias depois, foi convocado para uma reunião do Serviço de Segurança Pública e acusado de “fazer comentários falsos” que “perturbaram a ordem social”. Além disso, Li Wenliang estava a ser investigado pela polícia chinesa por “espalhar rumores” e foi obrigado a assinar uma carta em que se comprometia a parar com as suas “actividades ilegais”.
Na publicação, o profissional de saúde descrevia que tudo começou com uma tosse e rapidamente evoluiu para febre. Dois dias depois foi internado no hospital, juntamente com os seus pais, com quem tinha estado em contacto em diversas ocasiões.
Nas primeiras semanas de Janeiro, as autoridades de Wuhan garantiram que apenas aqueles que tinham tido contacto com animais infectados podiam ser diagnosticados com a nova doença e não emitiram nenhuma orientação para proteger os médicos que cuidavam dos doentes infectados. Foi nessa altura que o médico divulgou a carta que o tinham obrigado a assinar nas redes sociais. As autoridades locais chegaram a pedir-lhe desculpa pelo sucedido.
Só a 20 de Janeiro é que as autoridades sanitárias chinesas confirmaram que o vírus responsável pelo surto de pneumonia era transmissível entre humanos e que já tinha infectado profissionais de saúde. Quando Li Wenliang tentou alertar a comunidade médica para uma possível epidemia, existiam menos de dez casos confirmados. E quando a confirmação das autoridades finalmente chegou, já era tarde de mais para o médico.