Governo considera admissível que os clubes recorram ao layoff
Executivo não distingue futebol de outros sectores da economia. Especialista em Direito do Trabalho acusa clubes de cartelização, referindo a ilegalidade da decisão de não contratarem jogadores que rescindam contratos durante a pandemia.
O Governo não distingue as SAD (Sociedades Anónimas Desportivas, que gerem o futebol profissional) de outras empresas em dificuldade que pretendam recorrer ao layoff simplificado. Apesar das dúvidas que se têm levantado nos últimos dias, questionado pelo PÚBLICO, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social (MTSS) esclareceu que nada as exclui de acederem a este mecanismo de apoio extraordinário para mitigar os efeitos da crise financeira provocada pela pandemia do novo coronavírus, “desde que cumpram os requisitos previstos” por lei (DL 10-G/2020).
Apesar desta posição de princípio do Governo, a questão dos fundamentos invocados pelos clubes para colocarem os seus plantéis profissionais em layoff está a despertar dúvidas entre os juristas. Até ao momento, apesar de muitos clubes já terem publicamente anunciado a intenção de recorrer ao layoff, só as SAD do Belenenses e Desportivo de Chaves formalizaram os pedidos junto do MTSS.
Ambos se fundamentam na imposição governamental de encerrarem as suas actividades no âmbito do estado de emergência. Mas no decreto de 2 de Abril (Decreto n.º 2-B/2020), que regulamentou a prorrogação do mesmo estado de emergência, inicialmente accionado a 18 de Março (Decreto 2-A/2020), o legislador alargou uma excepção, já prevista – relativa às “actividades desportivas”.
Jogadores podem treinar
“O legislador alargou expressamente essa excepção à ‘actividade dos praticantes desportivos profissionais’ e acrescentou que essas excepções valem ‘em contexto de treino’”, lembrou ao PÚBLICO, a meio da semana, Alexandre Miguel Mestre, jurista especialista em Direito do Desporto e antigo secretário de Estado da Juventude e Desporto. Ficava assim aberta a porta para os jogadores que têm contratos de trabalho desportivo com clubes e SAD poderem treinar-se nas suas instalações.
“Se antes podia ficar a dúvida se havia ou não ‘encerramento total ou parcial’ dos clubes e sociedades desportivas – até porque muitos atletas afirmam e mostram publicamente estar a treinar em casa sob prescrição das respectivas entidades empregadoras e até com equipamento por estas fornecido, o que demonstra que a actividade pode mesmo continuar, apesar da determinação do encerramento da instalação –, agora já não existe essa dúvida”, defendeu o jurista.
“Salvo melhor opinião, não encontrarão nesse requisito – o do ‘encerramento total ou parcial da empresa’ – guarida para requerer o layoff simplificado”, concluiu Alexandre Mestre.
Queda abrupta de rendimento
Outra forma de os clubes aderirem ao layoff implicaria provar uma quebra abrupta e acentuada de, pelo menos, 40% da facturação nos trinta dias anteriores ao pedido. Uma situação que não se colocará para a maioria dos clubes que disputam as competições profissionais, em particular os da I Liga, já que todos receberam no final de Março (ou princípios de Abril) as receitas dos direitos de transmissão dos jogos pelos operadores de telecomunicações.
Esta verba é fundamental para os orçamentos das sociedades desportivas, principalmente as que têm menor dimensão. Uma quebra abrupta e acentuada de facturação poderá vir a ocorrer no final de Abril ou em Maio.
“Hibernação jurídica”
Mas mesmo que o Governo aceite agora ou no futuro próximo os pedidos de layoff, esta solução pode trazer riscos e constrangimentos aos clubes, defende João Leal Amado, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, especialista em Direito do Trabalho.
Considerando também discutível se os clubes preenchem os requisitos legais para recorrerem ao layoff, o docente sublinhou que este instrumento determina a suspensão dos contratos de trabalho desportivo dos jogadores com as respectivas entidades empregadoras.
“Os jogadores não estão a jogar, mas estão a treinar. Estão certamente a ser acompanhados, monitorizados, instruídos e vigiados, dentro do possível, pelos clubes. No caso de os contratos ficarem suspensos, em virtude do layoff unilateralmente promovido pelos clubes, isso implica, nos termos da lei, que ficam também suspensos os deveres dos jogadores para com os seus empregadores, aqueles deveres ligados à efectiva prestação de actividade desportiva”, lembrou ao PÚBLICO.
Ou seja, o layoff não se limita a reduzir o salário pago aos jogadores. Estes ficam dispensados da obrigatoriedade de treinar, de seguir os programas de preparação física, técnica e psicológica, ministrados pelo clube, etc. Um estado que Leal Amado denomina de “hibernação jurídica”, num texto recente publicado no site do Sindicato dos Jogadores.
Férias só com acordo
O mesmo acontece se os clubes decidirem antecipar as férias dos seus futebolistas para esta altura de pandemia, como já fez o Benfica, na última quarta-feira.
“O empregador não pode impor férias, a não ser que tenha chegado a acordo com os seus trabalhadores, neste caso os jogadores. O que a lei prevê é que as férias só possam ser marcadas entre Maio e Outubro e que têm de ser formalizadas com um mês de antecedência”, lembrou o jurista, ressalvando desconhecer os termos em que a SAD “encarnada” decidiu antecipar as férias dos profissionais.
“A lei estabelece o princípio da finalidade das férias e muitas delas estão completamente inviabilizadas pela actual situação de pandemia. São férias sem gozo de férias. Segundo a própria lei, as férias pressupõem a recuperação física e psíquica e de autodisponibilidade pessoal. O que não se verifica agora, quando uma pessoa está fechada em casa com o resto da família”, justificou.
Cartelização na Liga
Bastante surpreendido está Leal Amado face ao acordo entre os clubes das competições profissionais, tornado público a meio da semana pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional, onde estes se comprometem a não contratar qualquer jogador que tenha rescindido ou venha a rescindir unilateralmente o contrato de trabalho devido à pandemia.
“Queria sublinhar que o valor jurídico destes acordos é zero”, garantiu este especialista em direito do trabalho, referindo que o jogador que rescinda unilateralmente o seu contrato “poderá fazê-lo com ou sem justa causa”.
Para o jurista, os “patrões do futebol” ou outros quaisquer, “não podem elaborar uma espécie de ‘lista negra’ de jogadores. “Acordos como este são limitativos da concorrência entre clubes, típicos de um cartel”, ao colocarem em causa direitos fundamentais de um trabalhador.
“Não deixa, ainda assim, de impressionar a tranquilidade com que os patrões do futebol anunciam e publicitam os seus acordos, mesmo aqueles cujo conteúdo é rotundamente ilegal”, conclui.