Carta aberta ao senhor general António dos Santos Ramalho Eanes

Se a situação portuguesa atingir o dramatismo infelizmente vivido por outros, quero declarar – valendo como testamento vital – que não me sinto com menos nem com mais direitos do que um homem com mulher e filhos, uma mãe solteira, o papa, um refugiado sírio, Trump, o presidente da Assembleia Nacional, um sem-abrigo ou a Miss Universo. Sou apenas um ser humano, algures entre o cobarde e o herói. Apenas.

Estimado Senhor General,

Conheço-o e admiro-o de há muito. Conheci-o em Mafra, nos corredores, nos pátios e nas matas do Convento, em 1961, já lá vão muitos anos.

Era o tempo da guerra colonial e a sua ameaça era o nosso quotidiano. O tenente do meu pelotão, seu colega e amigo, tombaria em Angola, pouco depois. O Carlos Caprichoso, meu compadre e amigo infelizmente já desaparecido, foi então o seu colaborador mais directo e dava-me conta, constante, do invulgar perfil de homem e de militar que, já então, o marcava e distinguia.

Voltei e reencontrá-lo em diversa situação, quando em 1985 me bati como cabeça-de-lista às eleições autárquicas na minha terra natal. Lutei então pelo futuro progresso de Portalegre, inspirado pelo seu exemplo, no PRD, Partido Renovador Democrático.

O que foi a sua corajosa liderança em momentos difíceis na salvaguarda e consolidação dos mais nobres ideais do 25 de Abril ficou na História da nossa Democracia. O que foi o seu desempenho durante as Presidências da República, exercidas com insuperável dignidade, é para sempre um memorável exemplo. A sua coerência posterior, na rejeição de direitos e honrarias que outros aceitariam com naturalidade, criou-lhe o mito da excepção. O Senhor é, de facto, a reserva moral da Nação. No meu singelo blogue, Largo dos Correios, abundam as referências à sua personalidade. Tenho-o na mais elevada conta.

Segui com natural interesse a recente entrevista concedida à RTP e logo a transcrevi no blogue, onde o considerei igual a si próprio. Com efeito, a natural e superior sinceridade e elevação com que sempre soube colocar as coisas, todas as coisas, mantém-se inalterável.

Porém, houve aí um ponto, apenas um mas significativo, onde estou em desacordo com a sua posição. O senhor declarou estar pronto, como velho e se necessário, a doar o seu ventilador a um homem com mulher e filhos.

Literalmente interpretada, a frase até pode significar que doaria, ou devolveria, o ventilador a si próprio, uma vez que é um homem com mulher e filhos.

O Senhor General, que é um homem culto, lembra-se com certeza de um filme dramático, de 1982, intitulado A escolha de Sofia. A direcção foi de Alan Pakula e a magistral interpretação de Meryl Streep valeu-lhe então o Óscar da melhor actriz. Do seu penoso e cruel enredo recordo com horror a cena em que um sádico oficial nazi, num comboio a caminho de Auschwitz, obriga a polaca Sofia (Meryl Streep) a escolher qual dos seus filhos, um menino ou uma menina, será executado, sendo ambos sacrificados se não houver uma decisão.

Na Itália, e ao que parece bem depressa na Espanha, os médicos são obrigados a uma renovada “escolha de Sofia”, a decidir sobre a vida e a morte dos seus doentes, por não haver capacidade de responder a todos os casos mais graves ou desesperados. E citam-se guias denominados éticos que pretendem ajudar quem tem de tomar tais decisões.

As maiores contradições, como não poderia deixar de ser, invadem essa espécie de manuais de “piedosa” eutanásia, em tudo contrários à luta pela Vida, como Hipócrates ensinou e os médicos juram: Guardarei respeito absoluto pela Vida Humana desde o seu início, mesmo sob ameaça e não farei uso dos meus conhecimentos Médicos contra as leis da Humanidade.

Agora inventam-se excepções pretensamente éticas, dando prioridade a quem tenha maior esperança de vida com qualidade; tendo em conta a sobrevivência sem deficiências; não assinalando a idade cronológica como o único elemento a considerar; reconhecendo o valor social e o número de pessoas a cargo…

Senhor General, creio haver outros dados e diferentes valores em apreço para além da “escolha de Sofia”, e a esses quase ninguém se refere. Como, por exemplo, as incontornáveis obrigações políticas de quem nos governa, na tranquilidade dos normais quotidianos, e sobretudo nos momentos críticos como este que vivemos.

O nosso Presidente da República e em especial o primeiro-ministro, mais a sua delicodoce ministra da Saúde e o seu todo-poderoso ministro das Finanças, e ainda a patética directora-geral da Saúde, todos eles têm de dar – obrigatoriamente! – o seu melhor e fazer os impossíveis para que a situação portuguesa não atinja o dramatismo infelizmente vivido por outros.

Mas se isso acontecer, quero declarar – valendo como testamento vital – que não me sinto com menos nem com mais direitos do que um homem com mulher e filhos, uma mãe solteira, o papa, um refugiado sírio, Trump, o presidente da Assembleia Nacional, um sem-abrigo ou a Miss Universo. Sou apenas um ser humano, algures entre o cobarde e o herói. Apenas.

Com a maior admiração, Senhor General, subscrevo-me

António Miguel Martinó de Azevedo Coutinho

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