Este ano o Compasso não sai à rua, mas a Páscoa dá na Internet
Várias tradições católicas foram adiadas. Na aldeia do Fontão, em Ponte de Lima, o mordomo está inconsolável. “Nem em tempo de guerra isto aconteceu”, dizem.
Há uns meses largos, na aldeia de Fontão dava-se início aos preparativos de uma das tradições pascais mais emblemáticas desta aldeia do concelho de Ponte de Lima. No próximo domingo haveria de se cumprir mais uma vez o ritual e a aldeia inteira estaria presente em mais um almoço de Páscoa. À cabeça da mesa estaria o responsável pela organização da celebração e pela factura da despesa – o mordomo da Cruz. Mas este ano a tradição não se vai cumprir em Fontão ou noutra localidade do país. Por uma questão de segurança e para evitar o contágio do covid-19 as missas serão celebradas sem gente e as procissões não sairão à rua. Porém, existirão alternativas mais seguras que permitam aos fiéis não deixar de assinalar a data. Mas, desta vez, terão de o fazer a partir de casa.
A tenda onde se realizaria o almoço já estava alugada, assim como estavam contratados os serviços de uma cozinheira capaz de cozinhar para as cerca de 600 pessoas que todos os anos se juntam à volta da mesa. António Norberto Fernandes, o mordomo da Cruz deste ano já tinha o menu definido. Seria semelhante ao do ano passado: filetes de pescada, vitela assada e cabrito do monte. Tem que ser do monte porque diz que na aldeia é assim que as pessoas gostam. O menu mantém-se, mas vai demorar mais um ano até ser servido. Na sequência das medidas de recomendação definidas para fazer face à pandemia a festa foi cancelada.
Pela primeira vez desde que a tradição começou vai tornar-se no primeiro mordomo em funções durante dois anos seguidos. Não vai poder passar o testemunho sem encerrar a sua parte na missão que lhe foi atribuída. Ao PÚBLICO demonstra o orgulho que tem em ocupar esta posição, mas não esconde a tristeza e frustração de não poder retribuir com o que estava planeado.
Na aldeia a frustração passou para o resto da população. Em casa em isolamento voluntário, António Norberto Fernandes sai “de vez em quando” para uma caminhada nocturna. Durante o percurso tem encontrado quem trilhe o caminho percorrido pela cruz até ao local onde habitualmente se realiza o almoço. Vai trocando umas palavras com quem passa. “As pessoas estão tristes com o cancelamento”, afirma. Mas mais tristes estão com a situação “que o mundo atravessa”, sublinha.
Não há memória de outro cancelamento
Aos 62 anos não se lembra de alguma vez se ter cancelado o almoço pascal. Não se recorda ele nem as pessoas mais velhas que conhece: “Faz este ano 50 anos desde que o meu sogro [com 87 anos] foi mordomo e mesmo ele não se lembra de alguma vez ter acontecido. O meu pai [com 92 anos] também não se recorda”. “Nem em tempo de guerra aconteceu”, sublinha.
José Orlando Fernandes, “fontanense de gema”, foi o mordomo do ano passado. Foi ele que pagou a conta do almoço do em 2019, mas explica que as funções deste cargo honorário não passam só pela oferta do repasto. O mandato prolonga-se por um ano. Durante esse período que começa na quarta-feira de cinzas, logo depois do Carnaval, quem assume funções fica também responsável por algumas despesas de manutenção da igreja, assim como pela sua limpeza e por tocar o sino.
Não sabe muito bem há quantos anos se cumpre esta tradição, mas sabe que começou “há muitos anos”. Recorda-se que entre os anos 1960 e 1970 o almoço estava apenas reservado aos homens. Mais tarde passou a convidar-se a “família inteira”. Quem envia os convites é o mordomo.
A única forma de se ocupar o cargo é através de convite. O testemunho é passado no dia do almoço por quem exerce funções, que é o responsável pela escolha.
Decidiu passar o testemunho ao irmão por já estar “há algum tempo na lista”. Antes de se passar a responsabilidade tenta-se sondar quem tem disponibilidade para o fazer. Mas até ao dia do anúncio o segredo mantém-se. “Toda a gente diz que não quer ser mordomo. Mas depois de receberem o convite ficam motivados”, afirma.
Há outra condição para se ser elegível: tem que se ter sido mordomo do Senhor. Explica que essa é uma função de apoio ao mordomo da Cruz. “São uma espécie de ajudantes”, troca por miúdos. Durante o mandato passam a ser “uma espécie de segunda/terceira figura da aldeia”. “Sempre que há festas e outros eventos na aldeia o mordomo tem de acompanhar”, explica.
Quando nas primeiras semanas de Março se ouvia falar na possibilidade de cancelamento os “rumores” não foram bem recebidos. “Inicialmente lidamos todos muito mal porque isto está enraizado na nossa tradição”, recorda. Mais tarde perceberam que esta seria a melhor decisão: “Faz-se um intervalo e no próximo ano retoma-se os festejos como deve ser”.
Cumprir rituais sem sair de casa
Contactada pelo PÚBLICO, a igreja de Fontão diz não estar programada qualquer alternativa para que as pessoas possam assinalar a data sem se ausentarem de casa. Porém, um pouco por todo o país há paróquias que estão a criar formas de se aproximarem dos fiéis.
As procissões não saem à rua e as missas não terão gente, mas há formas de acompanhar alguns rituais litúrgicos online e pela televisão, como aconteceu no Domingo de Ramos, quando o Cardeal Patriarca de Lisboa celebrou a missa numa igreja vazia.
São só alguns exemplos, mas em Fátima, pela primeira vez, porque as celebrações vão ser realizadas sem peregrinos e à porta fechada, serão transmitidas a partir de meios digitais. O programa da Semana Santa de Braga também poderá ser acompanhado pela Internet. Já em Castelo Branco, o Sábado de Aleluia poderá ser visto a partir das janelas e varandas. No mesmo dia, em Tondela, o hino de Judas será também cantado à janela.
Na Guarda, a pedido do bispo Manuel Felício, os sinos vão tocar “festivamente” no domingo. O mesmo vai acontecer em Caminha, onde além disso, será distribuído à porta de casa dos habitantes pão-de-ló e doçaria tradicional, numa iniciativa levada a cabo pela câmara e por pastelarias do concelho.