Passado, prosperidade e pandemia

Esta é a quinta conversa da nossa segunda memória, dedicada à polarização.

Quando Boccaccio se recolheu à vila de Fiesole, nos arredores de Florença, durante a peste de 1348, e teve a sua ideia para o Decameron de cem histórias contadas por sete mulheres e três homens que fazem uma quarentena, já era de um exercício de nostalgia que a sua vida literária tratava. Dante morrera uma geração antes, em 1321, no exílio, em Ravena. Boccaccio tinha por ele uma admiração profundíssima. Nós, que conhecemos o título da maior obra de Dante, a Divina Comédia, ignoramos na maioria que ela só se chama assim por causa de Boccaccio. Dante chamara ao seu poema apenas a Comédia. Foi Boccaccio que lhe acrescentou o adjectivo Divina de cada vez que falava ou escrevia sobre ela, de forma que a qualificação acabou por se tornar inseparável do título.

O que Boccaccio não sabia é que o seu mundo estava inapelavelmente a desaparecer.

A data mais antiga que encontramos para uma eclosão da Peste Negra é 1321, a data da morte de Dante, mas do outro lado da grande massa eurasiática, numa província chinesa a que chamavam Hopei, e a que hoje chamamos Hubei, a nordeste de uma cidade chamada Wuchang, que foi uma das três, e a mais antiga, que se juntaram para criar a cidade hoje conhecida por Wuhan. Isto não quer dizer que a pandemia tenha começado em Wuchang; ela pode ter vindo de outro lugar, mas a China era um dos estados mais centralizados e burocratizados daquele tempo, e daqueles de que nos resta documentação mais bem organizada, pelo que pode simplesmente este sejam os primeiros registos de uma pandemia cujas origens são ainda desconhecidas.

Nesta nossa quinta e última conversa da segunda memória das “seis memórias do último milénio” de que se compõe Agora, agora e mais agora, vamos falar da Peste Negra, e sobretudo do mundo com que a Peste Negra acabou.

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