Elizeth, Elza e Maysa, uma viagem a três vozes por um Brasil de ouro

Três excelentes cantoras brasileiras em dose dupla, com reedições históricas neste tempo suspenso.

Primeiro chegou Elizeth. Depois Elza. E por fim Maysa. Nas reedições que nos vêm trazendo, aos poucos, discos há muito esgotados da imensa produção musical brasileira dos anos 1950-60, estas três cantoras vieram juntar-se, no mercado nacional, a um bom lote de discos (com 2 LP unidos num só CD, em digipack, com etiqueta Aquarela do Brasil) que já nos devolveram obras marcantes de Dorival Caymmi, João Gilberto, Luiz Gonzaga, Roberto Menescal, Baden Powell, Carlos Lyra, Marcos Valle, Quarteto Em Cy, Milton Banana ou Jorge Benjor.

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Elizeth Cardoso, Elza Soares e Maysa

Muitas vezes, a atenção dos editores centra-se nos primeiros discos, e foi isso que aconteceu nestas reedições com, por exemplo, Carlos Lyra, Luiz Gonzaga ou Dorival Caymmi. Mas no trio de vozes que agora se apresenta, essa regra só foi seguida no caso de Elza Soares. Hoje com 82 anos, e ainda a fazer furor entre os seus numerosos fãs (como se viu em Ovar e em Lisboa, no Verão de 2019), aqui recuamos 60 anos e vamos encontrá-la mesmo no início da carreira, onde a sua voz rouca, que já se aproximava do rugir de uma trompete, desde logo se impôs. Nascida em 23 de Junho de 1930 numa favela do Rio de Janeiro, obrigada pelo pai a casar-se aos onze anos, viúva aos 21 e com uma vida marcada por vários episódios trágicos (violência doméstica, morte de filhos, tentativa de suicídio), Elza tornou-se um símbolo da resistência ao arbítrio masculino, ao racismo e às injustiças, e discos como Do Cóccix Até o Pescoço (2002), Deus é Mulher (2018) e Planeta Fome (2019) consagram essa aura.

A presente reedição junta os seus álbuns Se Acaso Você Chegasse e A Bossa Negra, os dois primeiros dos dezassete que Elza gravaria para a Odeon desde 1960 até 1973. O tema-título do primeiro, Se acaso você chegasse, de Lupicínio Rodrigues e Felisberto Martins, teve logo grande êxito, e, a par dele, Elza mostra o que vale em temas como Mulata assanhada (Ataúlfo Alves) ou Samba em copa (Cyro Monteiro). No segundo disco, volta a Lupicínio (Cadeira vazia), juntando-lhe autores como Dunga (O bilhete) ou Edson Menezes (Fala baixinho). Nos bónus (que ampliam os 24 temas originais para 32) podem ainda ouvir-se versões de Mack the knife (Weill-Brecht) ou In the mood, transformado por Aloysio de Oliveira em… Edmundo.

Elizeth Cardoso (também grafada como Elizete nalguns discos) ressurge num clássico que já tivera edição portuguesa em 2008 (pela Mbari), Canção do Amor Demais (1958), agora com dois bónus: a totalidade do álbum retrospectivo Grandes Momentos (1963), onde ela regravou, com uma orquestra dirigida por Moacyr Silva, vários dos seus sucessos antes editados em 78 rotações; e três temas gravados em 1957, também com orquestra, dois de Ary Barroso (Na baixa do sapateiro e Risque) e um de Tom e Vinicius (Se todos fossem iguais a você). De Canção do Amor Demais já tudo se disse e sabe: foi o disco que selou a transição da samba canção para a bossa nova, onde Elizeth cantou só composições de Tom Jobim e Vinicius de Moraes (a começar por Chega de saudade) e onde estava presente o violão de João Gilberto. Uma excelente ocasião para reouvir Elizeth Cardoso (1920-1990), “A Divina”, no ano em que se celebra o centenário do seu nascimento. No disco Canção do Amor Demais, Vinicius escreveu: “E foi assim que a Divina impôs-se como a lua para uma noite de serenata.”

Por fim, Maysa (1936-1977), uma das cantoras (a outra foi Dolores Duran) que causaram “uma reviravolta na canção brasileira”, segundo Zuza Homem de Mello no notável livro Copacabana – A Trajectória do Samba-Canção (1929-1958) (editora 34, 2017). Os dois discos, aqui “casados” num só, são os nono e décimo dos 16 que gravou até 1974, três anos antes de morrer, tragicamente, num acidente de automóvel na ponte Rio-Niterói. Em Songs Before Down (1961), ela canta versões, desde Autumn leaves a Ne me quitte pas. O segundo, Barquinho (também de 1961) testemunha a aventura falhada de Maysa, “cantora de fossa”, na bossa, onde nem o acompanhamento do Tamba Trio ou os arranjos de Menescal e Luiz Eça salvaram a tentativa. “Um tremendo erro”, disse Carlos Lyra, citado por Zuza no seu livro. Mas a profundidade da voz e o desassombro desta “mulher linda e corajosa” (ainda segundo Lyra) é razão suficiente para ouvi-la, uma e outra vez.

Com Maysa, Elza Soares e Elizeth Cardoso ganhamos, neste tempo suspenso, uma viagem a três vozes por um Brasil de ouro.

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