Twin Peaks, a série que mudou tudo, celebra 30 anos e o agente Cooper faz a festa
Esta quarta-feira será possível (re)ver o primeiro episódio da mítica série de David Lynch na companhia de Kyle MacLachlan, recuando a Abril de 1990. Três décadas depois, o que significa Twin Peaks?
“Diane, tenho na minha mão uma pequena caixa de coelhinhos de chocolate.” Estamos na iminência de uma Páscoa dissonante e quem melhor do que o agente Dale Cooper para a anunciar no primeiro episódio de Twin Peaks, que cumpre esta quarta-feira 30 anos e que o próprio actor Kyle MacLachlan vai rever com os fãs mais logo via Twitter? A série que mudou a televisão e marcou a entrada dos anos 1990 na cultura popular (ou vice-versa) cumpre o seu 30.º aniversário ainda envolta em mistério. Como a rapariga encontrada à beira rio, “morta, embrulhada em plástico”.
O comentário sobre a caixa de chocolates é um bom exemplo da colecção de significativos momentos fugazes que deram a Twin Peaks, a série criada por David Lynch e Mark Frost, o seu tom peculiar. Uma série noir sobre a morte de uma rapariga tornou-se um fenómeno nos anos 1990 e, depois, um título de culto que qualquer análise da história da ficção televisiva identifica como um catalisador de mudança para novas narrativas, riscos e rasgo artístico. Num ambiente de puro noir, o agente Dale Cooper emprestava simultaneamente solenidade e comicidade sofisticada à investigação do FBI e da polícia local sobre a morte de uma adolescente.
“Quem matou Laura Palmer?” foi um dos primeiros anúncios provocadores do canal ABC e tornou-se uma frase do início da década de 1990. Passados 30 anos sobre a sua estreia, o culto permanece vivo. Os coelhos de chocolate e os gritos lancinantes de Palmer, da sua mãe ou de Cooper, hoje convertidos em memes, são símbolos de uma das histórias mais melancólicas e intrigantes da televisão. Twin Peaks: O Regresso, uma terceira volta à pista televisiva de Twin Peaks estreada em 2017, só veio reforçar a febre e demonstrar a sua força transformadora. Os Cahiers du Cinéma ainda no ano passado consideraram os 16 episódios da série de 2017 “o melhor filme da década”.
Esta noite, a festa terá o anfitrião que merece: Kyle MacLachlan, o actor que sabe que será sempre o agente Cooper. Não só na cultura popular, mas na cabeça do criador. “Para o David [Lynch], sou o Cooper. Sou o Cooper e vivo em Twin Peaks”, disse ao Los Angeles Times em 2017 sobre a forma como o autor da série o aborda, o vê, o convoca. Pelas 19h30 (hora de Lisboa), MacLachlan vai estar na sua popular conta no Twitter a comentar em directo o primeiro episódio. Duas horas depois, o actor vai estar novamente em directo, mas desta feita no Instagram, a falar e a responder a perguntas sobre Twin Peaks, acompanhado pela actriz Madchen Amick, a Shelly Johnson da série.
A ideia foi de Kyle MacLachlan, que disse no Twitter ter notado como muitas pessoas estavam a aproveitar o 30.º aniversário da série, que incidentalmente se comemora em plena quarentena, para a rever. Uma convenção de fãs foi cancelada devido à covid-19 e dadas as circunstâncias de saúde pública a reunião desta quarta-feira vai mesmo ser online. Também a CORonTV, uma conta que repõe televisão vintage e que está alojada na plataforma de vídeo Twitch, começará uma maratona de “conteúdos raros de Twin Peaks” às 22h, que culminará três horas depois com “a transmissão original do episódio-piloto, incluindo intervalos e publicidade” para “ver como fosse a primeira vez”.
“Nunca foi visto nada como isto"
A primeira vez foi mesmo a 8 de Abril de 1990, quando uma série sobre o Noroeste Pacífico dos Estados Unidos se estreava na ABC – a Portugal chegaria, via RTP1, a 22 de Novembro. “Nunca foi visto nada como isto no horário nobre dos generalistas”, escrevia o New York Times na sua crítica, publicada dois dias antes da estreia. “A grande novidade aqui é David Lynch”, garantia a Hollywood Reporter. “Lynch, o cineasta. O homem que nos trouxe coisas como Eraserhead e o Homem Elefante virou-se para a televisão. E fê-lo de tal maneira que os produtores e os críticos que olham para a televisão como uma forma de arte secundária em relação ao grande ecrã agora verão como é que é suposto fazer-se [boa televisão]”, entusiasmava-se Richard Hack na revista. É que Twin Peaks era “uma novela sem igual, televisão sem igual”, decretava Howard Rosenberg no Los Angeles Times.
O orçamento para o primeiro episódio, composto meticulosamente por David Lynch e até hoje o pontapé de saída para mil especulações e zero respostas por parte do autor, foi de 1,6 milhões de euros, embora o elenco não tivesse grandes nomes. Promovida na ABC e na imprensa como uma série de crime – Lynch e Frost, saído de A Balada de Hill Street, começaram com a simples e típica premissa “uma rapariga é encontrada morta” –, não se comparava afinal a “nada que já se tenha visto no horário nobre – nem na Terra”, corroborava a revista Time. “Pode mesmo ser a obra mais assombrosamente original alguma vez feita para a televisão americana.”
O mundo acompanharia o entusiasmo norte-americano e o universo de Twin Peaks cresceria com uma segunda temporada (com Lynch já longe e muitas escorregadelas). O autor pródigo regressaria para resolver tudo no final e até criar um filme, Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer (1992), abrilhantado com uma aparição de David Bowie.
Trinta anos depois, a academia, a crítica e a história já fizeram todos os elogios e todas as interpretações da série que abriu caminho para as narrativas mais arrojadas, herméticas ou intrigantemente abertas das décadas seguintes. Mas as leituras de Twin Peaks não terminam. “Quando trabalhamos com David Lynch temos de aceitar que estamos a trabalhar com o desconhecido”, disse em 2018, aos fãs reunidos numa convenção na Austrália, Sheryl Lee, a actriz que deu corpo e cadáver a Laura Palmer (e à prima Maddy, entre outras encarnações). Citada pelo diário britânico The Independent, Lee desencorajava então “uma abordagem lógica”, aconselhando “entrega e redenção” perante Twin Peaks.
Estava a falar do trabalho de actriz, mas isso aplica-se a tudo: à experiência de visionamento de Twin Peaks: O Regresso e do seu emblemático e nuclear oitavo episódio até ao embalo da música de Angelo Badalamenti. “Se a série era um barco em movimento, a música de Angelo era o rio que o carregava”, comentou Mark Frost, citado pelo mesmo Independent.
David Lynch ainda sonha com as personagens de Twin Peaks, os seus “velhos amigos”. Muita da série, nomeadamente as cenas e as figuras da Black Lodge e da sala vermelha, vem dos sonhos do cineasta, e o ensaísta francês Pacome Thiellement não desiste de os tentar interpretar. A editora Alpha Decay acaba de publicar em Espanha o seu livro Tres ensayos sobre Twin Peaks, onde cruza as influências e citações de Lynch, que passam pela incontornável Laura, de Otto Preminger, por Edgar Allan Poe ou pelos infernos de Dante.
Conclui Thiellement, como se lê no diário El País, que na série “não há diferenças entre sonho e vigília” e que é a partir dela que a obra de Lynch “se enche de caminhos que não levam a lado algum”. O ensaísta francês, citava há dias o jornal espanhol, acredita que Twin Peaks confirma que a televisão – ou pelo menos esta televisão – é “um resíduo psíquico da vida”.