Dever especial de protecção

Neste quadro legal de estado de emergência, o Governo deveria mobilizar as Forças Armadas para saírem das casernas e, com o mesmo sentido de responsabilidade democrática de 1974, assistirem as autoridades e comunidades locais a assegurar o dever de protecção especial a quem dele necessita.

No desenrolar desta pandemia perguntamo-nos muitas vezes o que é o Estado e o que é o sentido de comunidade que lhe dá vida.

Não sei se o Estado é um meio para atingir a felicidade do indivíduo, ou se a felicidade do indivíduo é assegurada pelo Estado ou se a felicidade do indivíduo e do Estado são não apenas uma só. Não consigo discernir qual o elo e sentido desta relação perante a impotência a que os factos nos sujeitam. Procuro apenas reconfortar-me na ideia, ou fé, de que o Estado, através das suas múltiplas instituições, contingentes, recursos e autoridade, protegerá os indefesos, porque os demais saberão cuidar de si.

A Constituição, enquanto expressão colectiva da identidade e fins de uma comunidade política, consagra uma função de protecção, contra ameaças externas à comunidade, contra ameaças à vida, liberdade e dignidade dos indivíduos, quanto aos direitos políticos, cívicos e sociais que animam o governo dessa comunidade. Em condições normais de governo, de um modo geral acreditamos que esta articulação de direitos é inspiradora, porque estabelece um horizonte de liberdades e de garantias na nossa relação com o Estado e uns com os outros, ainda que saibamos que a sua efectivação, sobretudo em matéria de direitos sociais, ficará sempre aquém das expectativas. Vivemos num engano consentido, mas referendado, o que nos permite sempre (ainda que com informação assimétrica) gratificar os que melhor fazem ou que melhores intenções têm de fazer. Porém, é em momentos como este que o direito constitucional se esvazia do seu conteúdo inspirador e o desencanto instala-se.

No seu Artigo 72.º, a CRP consagra o direito à terceira idade: “As pessoas idosas têm direito à segurança económica e a condições de habitação e convívio familiar e comunitário que respeitem a sua autonomia pessoal e evitem e superem o isolamento ou a marginalização social.” Com o decretar do estado de emergência pelo Presidente da República, o Artigo 4.º do Decreto n.º 2-A/2020, que procede à sua regulamentação e execução, estabelece um Dever especial de proteção” para os maiores de 70 anos, os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica, que por regra também são idosos. O isolamento social passa a ser entendido como uma medida necessária para assegurar a sua saúde e sobrevivência. O direito (individual) à terceira idade converteu-se num dever “comunitário” de protecção deste grupo de risco, ou seja, uma responsabilidade de todos nós. Se se tratasse de um dever individual, estaríamos a falar de auto-protecção e deixaríamos os indefesos entregues ao seu próprio bom senso e responsabilidade. Não foi esse o sentido dado pelo decreto do Presidente da República, também ele um cidadão em risco, ou pela subsequente regulamentação do Governo.

Permitir que pessoa idosa se desloque ao supermercado ou à farmácia para compra de bens essenciais ou medicação é colocar em cheque o “dever especial de protecção” que nos compete assegurar enquanto comunidade. Nesse sentido, as centenas de iniciativas individuais e comunitárias que têm surgido, entre vizinhos, para assegurar as compras e os abastecimentos das pessoas mais vulneráveis são não só uma resposta humanitária instintiva de entreajuda mas uma forma de dar cumprimento, no terreno, às medidas de emergência decretadas pelo Estado. Infelizmente, essas redes informais de apoio comunitário só são viáveis nas cidades onde há voluntários suficientes entre a população de menor risco para que a comunidade se organize sem precisar do suporte do Estado. Em inúmeras localidades no Portugal profundo, onde as forças vivas da sociedade (associações, ONGs, grupos de cidadãos) escasseiam e o défice de capacidade de resposta se faz sentir, os idosos e outras pessoas em risco acrescido de contrair o vírus continuam a ter de tratar de si mesmos, saindo de casa para os abastecimentos essenciais e expondo-se aos perigos de contágio e propagação da doença. A maioria da população do interior do país é idosa. Uma boa parte dessa tem os filhos e netos à distância, nas cidades do litoral onde estão também eles confinados ao dever geral de recolhimento domiciliário, como medida preventiva de propagação do vírus e, portanto, “incapacitados” de poder acudir às necessidades básicas dos seus familiares idosos.

Juntas de freguesia, câmaras municipais, protecção civil têm actuado no sentido de fazer chegar a essas pessoas o apoio logístico necessário. Os recursos são escassos, a informação também e por vezes não estão organizados da forma mais eficaz, por inexperiência, por desconhecimento. Impera a boa vontade, mas infelizmente não chega. Neste quadro legal de estado de emergência, o Governo deveria mobilizar as Forças Armadas, sobretudo os contingentes que têm participado em acções de ajuda humanitária e que estão mais aptos neste tipo de cenários, para saírem das casernas e, com o mesmo sentido de responsabilidade democrática de 1974, assistirem as autoridades e comunidades locais a assegurar o dever de protecção especial a quem dele necessita. Escusado relembrar que o dever especial de protecção se estende também a outros grupos de indefesos. Face à actual situação da calamidade pública, é importante que se potenciem todos os recursos do Estado e da sociedade para alavancar o esforço louvável que as comunidades locais têm vindo a desenvolver. Todos juntos, por uma só causa.

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