Uma OPA da China sobre a Organização Mundial de Saúde?
Na última década, a China apostou em ganhar influência no sistema das Nações Unidas, sobretudo à custa de norte-americanos e de europeus. A pandemia mostra como está a aproveitar atransformação global que muitos ocidentais subestimaram.
1. A Organização das Nações Unidas (ONU), tal como a precursora Sociedade das Nações (SdN), foi essencialmente uma ideia norte-americana. Ambas surgiram na primeira metade do século XX após duas devastadoras guerras mundiais, na realidade mais guerras europeias, que se projectaram no resto do mundo pelo poder e influência dos europeus na época. Em grande parte, ambas resultaram também da vontade de dois presidentes dos Estados Unidos da América (EUA) — Woodrow Wilson, no caso da SdN, e Franklin Roosevelt, no caso da ONU — que quiseram moldar o mundo exterior de acordo com os princípios, os ideais, mas certamente também os interesses norte-americanos.
O texto fundador das Nações Unidas — usualmente designado como Carta de São Francisco, por alusão à conferência que em 1945 decorreu nessa cidade da Califórnia — e a sede da organização na costa Leste, em Nova Iorque, apontam inequivocamente para os EUA no seu momento fundador e nos primórdios.
Mas hoje temos um mundo completamente diferente do que emergiu após o final da II Guerra Mundial. Inevitavelmente tais transformações do mundo reflectiram-se também na própria ONU, pela sua vocação de englobar todos os Estados. Ao mesmo tempo, a organização multiplicou-se em variados organismos específicos e agências especializadas nas mais diferentes tarefas, no que usualmente é conhecido como o sistema das Nações Unidas.
2. Para além das suas inquestionáveis virtudes, as Nações Unidas e as suas múltiplas agências e organismos especializados tornaram-se, frequentemente, numa máquina complexa e excessivamente burocrática, frequentemente ineficaz. Pior do que isso, nem sempre as acções coincidem minimamente com os ideais fundadores, sendo até por vezes, talvez demasiadas vezes mesmo, desvirtuadas. Este lado pior das Nações Unidas foi recentemente satirizado numa curiosa produção canadiana — The Mission (“A Missão”) — da autoria de Marie-Marguerite Sabongui e Benedict Moran. Ambos os autores trabalharam em organizações do sistema das Nações Unidas e decidiram transformar a sua experiência num show cáustico e hilariante. Não deixa de ser também sintomático que tenha tido origem no Canadá, país que também construíu uma particular afinidade com as Nações Unidas.
John Peters Humphrey foi o jurista e diplomata canadiano que maior contribuição deu para o texto que serviu de base à declaração universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948. Quanto a Lester B. Pearson, foi o criador das operações de paz (peacekeeping), onusianas, tendo-se destacado pelo papel político que teve durante a crise do Canal do Suez (1956). Em função dessa actuação foi-lhe atribuído o Prémio Nobel da Paz no ano seguinte. Por tudo isso, a sátira é provavelmente também um sinal de que a desilusão de muitos canadianos — e de outros ocidentais idealistas — com as Nações Unidas e as suas organizações, é cada vez maior e mais intensa.
3. Para qualquer observador atento à dimensão extremamente política das Nações Unidas, sempre foi demasiado óbvia. Como já notado, face aos princípios dos fundadores, o que talvez seja mais chocante para os mais idealistas é a distorção a que muitos dos ideais iniciais têm sido constantemente sujeitos, como ocorre de forma evidente no caso dos direitos humanos.
Quando países como a Arábia Saudita ocuparam várias vezes um lugar no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas — e hoje estão lá o Afeganistão, o Paquistão, a Líbia e outros com registos mais do que duvidosos nessa matéria — certamente não podemos esperar grande coisa desse organismo onusiano. Nem estes serão provavelmente os direitos humanos que o jurista canadiano John Peters Humphrey tinha em mente quando rascunhou a declaração universal em 1948.
Ao mesmo tempo, o calculismo frio do poder e dos múltiplos e contraditórios interesses impregna a organização. Quando o Secretário-Geral das Nações Unidas evita criticar a China sobre as violações dos direitos das populações uigures do Xinjiang, pelo menos de forma pública e clara, torna-se óbvio que a lógica de poder e dos interesses está aí instalada ao mais alto nível.
Naturalmente que não é um acaso, nem acontece só com os interesses da China. Criticar a Birmânia (Myanmar) pelas perseguições aos rohingya e violações de direitos humanos é uma coisa (fácil). Criticar um membro permanente do Conselho de Segurança com o poder da China — dos EUA ou da Rússia — é outra (difícil). Na realidade, nada disto é novo nem muito surpreendente. Tal como mostrou a experiência da Guerra-Fria, o desentendimento entre as grandes potências vencedoras da II Guerra Mundial levou, muitas vezes, à paralisação da organização, nomeadamente do Conselho de Segurança. No caso da Assembleia Geral das Nações Unidas e das suas múltiplas organizações e agências, tornaram-se também num terreno dessa disputa.
4. Uma das agências especializadas das Nações Unidas, a Organização Mundial de Saúde (OMS), fundada a 7 de Abril de 1948, ganhou uma visibilidade invulgar junto da opinião pública com a pandemia da Covid-19. Está hoje no centro de várias polémicas e de críticas contundentes, em particular o seu director-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, um médico e político da Etiópia, que chefia a organização desde 2017.
Não são as questões estritamente médicas que aqui vão ser analisadas, mas apenas as de natureza política. A nível internacional, os críticos mais cáusticos da OMS e do seu actual director-geral, acusam-no se ter tornado ‘cúmplice da China’, permitindo a expansão global do vírus. Com a sua ausência de críticas à gestão efectuada pelas autoridades chinesas nos primeiros tempos do surgir do vírus na cidade de Wuhan, e com os posteriores elogios abertos ao Governo chinês e às suas medidas de contenção, não prestou um bom serviço à saúde pública mundial, nem à humanidade no seu todo. Terá estado antes a retribuir o apoio que a China deu à sua eleição na OMS em 2017, ou, pelo menos, foi indevidamente condicionado na sua actuação por tal apoio.
Assim, a credibilidade internacional da organização foi posta em causa por um calculismo político do seu director-geral, qualificado, pelos críticos mais cáusticos, como uma espécie de ‘agente da China’ na OMS. É ainda assinalado que a China, sem que o director-geral da OMS efectuasse também qualquer protesto público contra tal atitude — como deveria ter feito por razões desde logo humanitárias — bloqueou a participação de Taiwan (Formosa) nas reuniões internacionais da OMS, pois vê-a como uma ilha rebelde destinada a (re)integrar o Estado chinês. Importa notar que aí se partilha importante informação sobre o novo vírus, bem como experiências sobre a melhor forma de travar a sua expansão e tratar dos infectados.
5. Usando com ironia uma metáfora empresarial, podemos interrogar-nos se ocorreu uma bem-sucedida oferta pública de aquisição (OPA) da China sobre a OMS em 2017, a que poucos prestaram atenção na altura. E também, quanto ao seu director-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, se depois desse takeover actuar mais como um representante do interesse chinês — uma espécie de ‘accionista maioritário’ — do que alguém genuinamente empenhado na saúde de toda humanidade.
Ironias à parte, o assunto é naturalmente dos mais sérios. Mostra, desde logo, o já referido lado demasiado político das Nações Unidas e das suas organizações, cheio de lutas de poder e de interesses. Assim, quanto ao facto de o actual director-geral da OMS ser do agrado da China, não há qualquer dúvida. Em 2014, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, numa declaração conjunta com o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Etiópia, o próprio Tedros Adhanom Ghebreyesus, elogiava a sua relação como um ‘excelente modelo para cooperação Sul-Sul’. É também claro que tem origem chinesa o maior investimento directo estrangeiro feito na Etiópia.
São certamente factos objectivos que levantam a pertinente questão de uma excessiva proximidade (ou dependência). Todavia, só por si, não provam que as críticas mais contundentes à actuação da OMS e ao seu director-geral, na pandemia da Covid-19 são devidamente fundadas. Para além disso, a questão principal está provavelmente num outro plano.
As organizações das Nações Unidas são mais um terreno da luta pela hegemonia mundial em curso. As grandes potências procuram projectar aí, o mais possível, os seus interesses e influência, por vários meios, políticos e económico-financeiros. Na última década, a China apostou estrategicamente em ganhar influência no sistema das Nações Unidas, sobretudo à custa de norte-americanos e de europeus. Tem procurado tirar vantagem do facto de a maioria dos países do mundo — ou seja, dos membros das Nações Unidas —, não serem nem desenvolvidos, nem democracias liberais, nem serem os direitos humanos o seu problema.
Neste terreno potencialmente favorável, tem conseguido isso de várias formas e com apreciável sucesso. Assumir, em número, a liderança das operações de paz das Nações Unidas, a maioria das quais decorre em África, foi um passo importante. Colocar um biólogo e político africano, com o qual tinha já relações privilegiadas, a chefiar a OMS, foi outra aposta bem-sucedida. O mundo já não é o clube euro-americano de 1945. A covid-19 mostra como a China está a saber aproveitar a enorme transformação global que muitos ocidentais subestimaram na sua profundidade e consequências.