O regresso atribulado de um casal português: “Que humanidade vai sair disto?”

Ana, médica, e Jorge, arquitecto, planearam uma viagem para celebrarem terem-se reformado recentemente. Mas “o diabo” da pandemia trocou-lhes as voltas.

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Ana e Jorge

Quando planeámos esta viagem o mundo ainda estava “cheio de saúde” e não nos passava pela cabeça que o diabo de uma pandemia iria dar nisto. Imagináramos, isso sim, deambular pela Oceânia, subir o Pacifico até ao Canadá e daí regressar a casa, cerca de três meses depois, regalados com o que mais gostamos de fazer: viajar. Ana, médica, e Jorge, arquitecto, celebrando as recentes aposentações.

Na Tasmânia ouvimos os primeiros alarmes de pandemia. E foi na Nova Zelândia que sentimos as primeiras restrições. Quarentena obrigatória (para ficar) e exigências médicas (para viajar). Do resto do mundo, as más notícias não param de chegar.

E, se dúvidas ainda tivéssemos, a nossa viagem acabou por ali. Estava na altura de regressar a casa — todavia o mais difícil, como viria a constatar-se.

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Ana e Jorge

Saímos da Nova Zelândia para o Tahiti, seguindo o instinto de uma rota segura e racional. A 17 de Março fomos recebidos em Papeete por militares e pessoal da saúde — mobilizados à pressa para nos impor medidas excepcionais decretadas horas antes. E aterrámos com o rótulo não-residentes-obrigados-a-isolamento, porque em 24 horas a estatística das infecções subira 100% (de três para seis casos). Sucederam-se as perdas de tempo e de dinheiro. Já para não falar no desgaste emocional, que tanta diferença faz ao sistema imunitário...

Não nos amedrontámos e argumentámos com isolamento voluntário, num alojamento bread and breakfast​, independente. Saímos do aeroporto, sem olhar para trás, sem sermos barrados na grande confusão.

Impusemo-nos rotinas de autoprotecção — com os espaços públicos fechados, incluindo praias.

O nosso estatuto oficial mudou, subitamente, para “persona-non-grata-a-repatriar-imediatamente”.  À bruta. Fizemos de conta que não percebemos. Porque a saída à vista, era a ponte aérea da Air France para França. A evitar, claro. Focamo-nos então na reinvenção da “nossa” rota de regresso, comprando (sem garantias de reembolso) novas passagens, em cenários de crescente escassez e constrangimentos.

Plano A: regressar à Nova Zelândia via Austrália (abortada por conselho do nosso cônsul em Camberra). Plano B: transitar por Auckland em direcção a Los Angeles, Vancouver e Toronto (e Lisboa). Nem nos deixaram embarcar devido ao fecho da fronteira na Nova Zelândia. Plano C: seguir nos últimos lugares do último voo (caiu do céu, literalmente) da United Airlines para São Francisco, seguindo-se Miami (via Newark) e daí Lisboa com a TAP.

Assim foi até Miami até nos anunciarem (com escolta de Marines e tudo) perto da meia-noite local que o estado da Florida acabara de anunciar quarentena obrigatória para quem chega. “No way!” Argumentámos com a inabalável determinação de ali voltar no dia seguinte para embarcar rumo a casa. Bastou uma pequena hesitação entre os policias, para arriscarmos sair dali. Outra vez sem olhar para trás.

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No dia seguinte, fizemos o caminho inverso. E não pareceu o aeroporto da véspera. Tudo deserto. As “boas vindas” da TAP nunca nos soaram tão bem. E o avião, quase vazio, desfez-se em atenções, até aterrarmos em Lisboa na madrugada de 28 de Março.

Acabou em bem. Queremos acreditar que assim será com tudo o resto. Confiamos que o planeta sabe o seu caminho. Todavia assaltados por duas questões muito prementes. Que humanidade vai sair disto? Que sobreviventes queremos ser?

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