O coronavírus visto pelas crianças: “Obrigado por me terem estragado as férias!”

Suspendeu o toque, os abraços e os beijos. Criou “uma trapalhada” que só deve acabar quando chegar o calor. Não é um vírus qualquer porque “está a afectar as necessidades fisiológicas e de segurança” das pessoas. Eis o coronavírus visto pelos alunos do 4.º A da Escola de S. Miguel de Nevogilde, no Porto.

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Mia, aluna do 4º ano

O coronavírus é uma espécie “de lobo mau”, descreve Rita, que “está lá fora, pronto a atacar quem sair do seu domicílio”. Logo, “é um vírus mau”, vaticina Gonçalo. Nesta história, cujo desfecho ainda está a ser escrito, as crianças parecem mimetizar o comportamento responsável do mais velho dos três porquinhos. Assumem o isolamento social como uma forma de proteger os outros, particularmente os avós, aceitando-o com aparente resignação, mesmo que o vírus (perdão, o lobo) tenha conseguido pôr-lhes a vida em pantanas. Tanto que, se pudesse, Francisco “ia à China”, levando na mala uma mensagem bem clara aos respectivos governantes: “Obrigado por me estragarem as férias!”

Para tentar registar as percepções das crianças sobre a pandemia que suspendeu o mundo, o PÚBLICO desafiou os alunos de uma turma do 4.º ano da Escola de S. Miguel de Nevogilde, no Porto, a escrever uma composição sobre o novo coronavírus. Entre desenhos, poemas e textos, as crianças com idades entre os nove e os dez anos parecem ter bem estudada a lição sobre este “inimigo invisível” que, além de ter fechado com estrondo as portas das escolas, as transformou numa espécie de arma potencialmente letal para os avós.

“Quem morre são os idosos com mais de 70 anos ou as pessoas com doenças respiratórias, eu amo os meus avós”, escreve Miguel, numa declaração de amor que torna a pontuação supérflua, dizendo-se consciente de que, se está em casa, é para “não aumentar o número de mortos e infectados”. Menos conformada, Francisca queixa-se da suspensão sine die do toque, dos braços e dos beijinhos: “É possível acreditar que no dia do pai nem o pude abraçar?!”, indigna-se, explicando que “uns colegas dele estiveram numa festa e apanharam covid-19 e ele teve de estar afastado”.

“Quando sair vou querer estar com os meus avós”, anuncia também Sebastião, qualificando como “estranha” esta experiência de “ter de ficar em casa”. Isto apesar de “a melhor família do mundo”, que diz ser a sua, o ter ajudado a suavizar a espera com uma rotina bem oleada: “Acordar, trabalhar tudo o que foi proposto, descansar, almoçar, jogar jogos, lanchar, tomar banho, jantar e dormir.” Sem fugir a prognósticos, Sebastião imagina que “esta trapalhada toda vai acabar quando o Verão chegar (ou seja, quando o calor chegar)”.

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Rita A., 10 anos, aluna do 4º ano de escolaridade

De acordo quanto aos timings, Francisco perspectiva um Verão pouco dado a brincadeiras e a mergulhos na praia. “O que acho que vai acontecer é que teremos de ter aulas quase todo o Verão para compensar e só mais tarde (talvez no início de Outubro) é que iremos para o quinto ano.” Daí que lhe tenha apetecido ir à China “agradecer” aos respectivos governantes o facto de lhe terem estragado as férias por conta da propagação de um vírus que, segundo diz, “vem dos morcegos”, o que ajudará a explicar que o corpo humano não esteja “pronto a combatê-lo”.

Viver com medo

Arredada das aulas desde o dia 13 de Março, apesar de as escolas só terem fechado no dia 16, Rita A. garante que nem todos os Google Party, Jitsi Meet ou WhatsApp do mundo curam as saudades dos avós, tios, primos e dos irmãos “que vivem noutra casa”. “As tecnologias que temos ajudam a ‘vê-los’, mas não é a mesma coisa”, lamenta. As aulas de ballet prosseguem, também via vídeo-qualquer-coisa. “Visto-me e faço o puxo como para uma aula normal”, descreve. Apesar disso, e dos trabalhos que a escola manda, a tristeza instala-se. “Não brinco com os meus amigos, os meus pais estão aqui, mas nem sempre têm tempo para me ajudar, porque também continuam a trabalhar mesmo em casa. Não é nada fácil estar tanto tempo fechada aqui dentro.”

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Mia, 9 anos

Fechada para o mundo, mas sem que os ecos do mundo estejam necessariamente impedidos de entrar casa adentro, com a televisão a debitar non-stop a contabilidade enlouquecedora dos mortos e infectados, Beatriz diz preocupar-se com o cenário nos hospitais: “Há falta de material e os médicos e todas as pessoas que trabalham com eles estão exaustos”, aponta, dizendo-se igualmente apreensiva com “o problema económico”, dado que “muitas instituições e empresas já estão fechadas para evitar o contacto com outras pessoas”.

Leonor confessa-se igualmente “perturbada” com “a insegurança com que as pessoas estão a viver”. “Eu não sei se a pessoa que está comigo está infectada. As pessoas vivem com medo”, escreve, para, recorrendo à recentemente aprendida “pirâmide das necessidades” do psicólogo norte-americano Abraham Maslow, concluir que o SARS-Cov-2 “não é um vírus qualquer”. “Sabemos que está a modelar a nossa vida (…) e está a afectar as duas necessidades mais importantes: as necessidades fisiológicas e de segurança.”

Maria partilha das preocupações com “a morte e sofrimento”. Mas não deixa de lembrar que há “mais a pessoas a morrer à fome, à sede e etc…”. De resto, prefere ir olhando para o copo meio-cheio, porquanto a gazeta forçada às aulas lhe permite, por exemplo, não acordar tão cedo e apanhar sol na varanda. “Acho que as pessoas, depois desta crise, vão começar a dar mais valor ao que têm”, antevê, depois de concluir que, à falta de vacina, o remédio é “dormir bem, estar sempre a beber (água, chá…) e ter uma alimentação saudável”.

Voltando à metáfora do lobo e dos três porquinhos, Rita acaba a sua composição com um pedido público: “Imploro ao lobo que se vá embora rapidamente. Mas imploro também aos porquinhos que não saiam de casa e que lavem as mãos frequentemente”, enquanto Maria reitera que “o principal é não ficarmos nervosos”. E, sem dispensar um emoji sorridente, aproveita para declarar: “Gosto muito de si, professora Manuela.”

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