O novo isolamento: viver sozinho é diferente durante uma pandemia?
Por opção ou para “proteger a família”, eles estão sozinhos em casa há semanas. E, até agora, “tudo bem”, dizem-nos, a partir do quarto em Itália, Espanha e Portugal. “Tento pensar que tenho sorte: estou aqui, estou protegida, o resto está fora do nosso alcance.” Cinco jovens contam-nos como passam os dias até poderem abraçar os avós, pais e amigos.
Foi preciso uma pandemia para Felipe Aguila começar a ler Proust, pousado na estante há 15 anos. “É um livro muito, muito longo”, pesado — indicado para quem, em vez de ler no autocarro, tem o dia inteiro para se sentar na “minúscula” varanda num sótão de Turim, em Itália.
“Não sou uma daquelas pessoas que decidiram aprender alemão enquanto estão fechadas em casa. Não sinto que deveria estar a consumir, nem me sinto pressionado a aprender algo novo. Só continuo a ler. Porque estou sempre a aprender quando leio. Agora, nunca pensei chegar ao ponto de ler Proust”, conta o bartender que, nos intervalos, se debruça em livros sobre vinho, numa altura em que parou de beber álcool para poupar dinheiro. À noite, deita-se com a “anti-poesia de Nicanor Parra”, matemático e poeta do Chile, onde vive a família de Felipe. A situação torna-se delicada é o título de um dos poemas.
Mais de três mil milhões de pessoas em quase 70 países ou territórios estão confinadas nas suas casas, por ordem das autoridades, para combater a propagação do novo coronavírus, segundo um balanço da Agence France-Presse (AFP). Se em países como a Índia e em algumas comunidades na Europa arranjar um quarto para se auto-isolar é impossível, há ao mesmo tempo quem tenha a casa inteira para si. O que pode trazer “outros desafios”, alertam psicólogos europeus.
“Mesmo não pertencendo a um grupo de risco, emocionalmente todos estamos um bocadinho em risco neste momento”, avalia a psicóloga Catarina Cruz, que continua a acompanhar pessoas através de consultas online, algumas delas sozinhas em casa. Durante uma crise, “algum grau de ansiedade é normal”, lembra a Organização Mundial de Saúde. E, apesar de ser aconselhado o isolamento e a distância de segurança, “manter o contacto com os outros”, dentro dos meios disponíveis, “é fundamental”.
Felipe está em casa desde 9 de Março, o “dia em que Itália fechou tudo”, incluindo o bar onde trabalhava. O confinamento no país europeu mais afectado pela crise de covid-19 foi renovado, pelo menos, até 13 de Abril e trabalhar a partir de casa não é uma possibilidade para um bartender — ainda menos para um que deixou de comprar álcool. “Nos primeiro dias, acordava às 5horas a pensar: ‘O que vou fazer? Como é que vou pagar a renda?’ Comecei a acalmar-me quando percebi que toda a gente está na mesma situação que eu”, confessa. Ir ao treino de boxe foi a última coisa “normal” que fez, recorda. “Quero muito voltar. Se só leres o tempo todo, podes enlouquecer”, ri-se.
“Este é o primeiro ano em que vou celebrar a liberdade fechada em casa”
No dia em que falou com o P3, da janela Felipe viu, pela primeira vez, o Porta Palazzo, um mercado ao ar livre em Turim, sem fregueses nem vendedores, só as mesas despidas a guardarem distância uma das outras. Horas depois em Lisboa, pela janela de Joana Martins entrava música ao vivo, a mesma que a vizinha começou a cantar todos os dias para os seguidores no Instagram. Ela bate-lhe palmas, distraída nos seus pensamentos. Este é um dos mais recentes: “2020 vai ser o primeiro ano em que vou celebrar a liberdade fechada em casa”.
“Acho que comecei a perceber que nunca iriam ser só 15 dias. E estou surpreendida por conseguir estar a lidar com a situação de maneira tão suave”, diz Joana, 26 anos. “Tento pensar que tenho sorte: estou aqui, estou protegida, o resto está fora do nosso alcance.” Há quem vá ainda mais longe: “Eu sinto que treinei para isto a vida toda”, comenta, entre risos, Nelson Nunes, escritor. “Estar sossegado, sem ser interrompido e em silêncio: isso é escrever”, resume, antes de admitir “uma certa ansiedade”. “Quando estou a escrever, o que está lá fora também não me afecta. Pelo menos agora não penso que podia estar a fazer outra coisa, em vez de estar trancado.”
“A verdade é que não tenho nenhuma preocupação ou medo”, diz por sua vez Yessica Palau, espanhola de 23 anos. “Ficar em casa sozinha foi uma decisão minha. Pensei que era mais responsável não ir ter com a minha família, para segurança deles. Por isso avancei com muitas forças e positivismo.”
No dia anterior a começar o isolamento voluntário, a estudante de Direito em Alicante, Espanha, teve um exame de manhã e à tarde foi descomprimir até à praia, como costuma fazer. Desde aí que só sai uma vez por semana, para ir ao supermercado e deitar fora o lixo. “Tento aparentar normalidade ao estar o mais activa possível. Por isso faço coisas normais como vestir-me, em vez de ficar o dia todo de pijama.”
Este tem sido o conselho mais repetido quer por psicólogos quer por quem habitualmente já trabalha a partir de casa. Na Bélgica, as conferências diárias das autoridades de saúde incluem não só números de infecções e mortes, mas também sugestões sobre o que fazer em casa, incluindo “estruturar uma rotina diária”, ler, cozinhar e fazer exercício físico.
“Processamos melhor a informação quando estamos em movimento. Se estamos muito tensos, libertamos energias com exercícios físicos ou umas boas gargalhadas com amigos, arrumações, um passeio. Se ficarmos muito parados essa carga energética toda que fica acumulada acaba por não se exteriorizar ou exteriorizar-se de forma disfuncional: vontade de chorar, sentirmo-nos muito irritadiços ou insatisfeitos”, frisa Catarina Cruz. “Fazer alguma coisa para a qual não teríamos tempo” é um dos incentivos da psicóloga.
“Muitos de nós não estão a conseguir ter tempo extra”
Concluído o primeiro dia em casa, Yessica começou todos os dias a escrever um texto inspirado numa palavra, que pede a amigos para lhe enviarem, e publica depois no Instagram. “Ajuda-me tanto para me distrair como para saber em que dia estou. Além disso, como estou sozinha, muita gente encoraja-me e diz que gostam muito do que publico, o que me dá forças todos os dias”, expõe.
Na mesma rede social, Joana começou a contar histórias para quem quisesse ouvir. Antes, cumpre a partir de casa o turno das 7h às 15h30 num call center que, ao contrário de outros, não hesitou em enviar os colaboradores para teletrabalho. Conversa com as colegas por Zoom, tem falado mais vezes com os pais do que o normal. A televisão está sempre ligada para “fazer companhia” — na Fox Comedy.
De resto, gosta de “ver os mesmos filmes vezes sem conta”, em DVD, uma boa competência para fintar o aborrecimento.“É como os [desenhos animados] Phineas e Ferb. O que vou fazer hoje?”, pergunta-se, enquanto olha em volta da casa que costumava partilhar com quatro pessoas.
Para a psicóloga Catarina Cruz, “uma das coisas que podemos tirar de tudo isto é o tempo”. Mas mesmo sem as deslocações de e para o trabalho, sem filhos para cuidar durante 24 horas ou uma profissão que continue a exigir sair à rua, “muitos de nós não estão a conseguir ter tempo extra”. “A verdade é que estamos muito confinados fisicamente mas, se calhar, mentalmente e emocionalmente nunca tivemos tanta liberdade”, acredita.
“É difícil ter ideias quando estás confinada em casa”, apercebeu-se Joana Martins, e avançar com o projecto final da faculdade está complicado. “Sim, tenho Internet, mas… Tenho saudades de ir à biblioteca. Quando voltar à rua acho que até vai ser estranho.”
Não saber pôr uma data neste “quando” é o que tem deixado Beatriz Freitas “mais inquieta”. “Toda a gente devia passar um período sozinho, um período em que estás só tu”, acredita a estudante de Psicologia de Felgueiras, a viver em Braga. “Mas não me imagino durante meses sozinha em casa, sem contacto físico.”
Não tem data, mas “quando for seguro” vai parar de jogar CS e LOL, fechar o computador e “organizar uma festa com toda a gente”. “Falta estar com os amigos. Aparvalhar com um copo de vinho ao final da tarde”, partilha também Nelson Nunes.
Em Espanha, Yessica discorreu sobre as palavras “janela”, “liberdade”, "esperança”. Mas a palavra mais difícil, até agora, foi “avó”. “Sei perfeitamente o que vou fazer quando isto acabar. Vou pegar no carro e ir a minha casa, dar um abraço à minha avó e dizer-lhe que a amo muito.”