Cinco equipas de militares processam testes 24 horas por dia

O mais difícil foi encontrar reagentes no mercado, devido à quebra dos stocks. Mas já têm usado um recurso caseiro.

Do bioterrorismo à covid-19. Laboratório militar converte-se para testar o novo coronavírus Teresa Abecasis

“Teste, teste, teste” tem sido a recomendação imperativa lançada em sucessivas conferências de imprensa pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Outras vozes anotam que a política sistemática de realização de testes está na origem da forma como a Coreia do Sul suavizou a curva da sua pandemia. De norte a sul do país, em lares, empresas, hospitais, vilas e cidades, responsáveis das instituições particulares de solidariedade social, administradores, médicos e autarcas reclamam por testes.

Os testes permitem saber quem está contaminado ou superou com sucesso a quarentena de isolamento social, separar os infectados e romper as cadeias de contágio. É uma aspiração que esbarra na escassez do material no mercado internacional, com preços em alta e uma concorrência desenfreada à escala planetária – que vai das peças do material de protecção individual, de luvas, toucas, óculos ou máscaras às soluções de álcool e aos ventiladores, passando, claro, pelos kits de testes. Em instalações militares de Lisboa, cinco equipas processam testes 24 horas por dia, sete dias por semana. 

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MIGUEL MANSO

“Começámos com o processamento em escala contínua há uma semana, tivemos duas semanas em período de certificação interna e externa, explica ao PÚBLICO o major Wilson Antunes. São oito horas da manhã desta quinta-feira e a equipa de três elementos lança a sua jornada.

“Há cinco equipas de três pessoas que trabalham 24 horas por dia, todos os dias”, precisa o militar. A equipa do major Wilson Antunes, veterinário de formação com formação na área da microbiologia e infecciologia, integra o capitão Tiago Gonçalves, farmacêutico, e a alferes Linda Silva, enfermeira veterinária.

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Por dia, estas cinco equipas estão a processar 50 testes por dia, ou seja, 1500 por mês. Uma gota de água no mar das necessidades, mas sempre é contributo. “Temos actualmente uma reserva de cerca de quatro mil testes que estamos a utilizar com os militares”, avança o chefe da equipa. Mas não ilude o que o motiva. “O nosso objectivo é fazê-los para o Sistema Nacional de Saúde”, garante. 

“Não temos nenhum prazo previsto, é uma questão de contactos, trata-se da coordenação dos dois sistemas [civil e militar], para que possamos processar de forma sistemática”, assegura.

Esta unidade militar laboratorial, que conta com elementos formadas em Veterinária e Farmácia, não nasceu do acaso. “A microbiologia está ligada à veterinária desde 1916, na I Guerra Mundial”, precisa o major. “Temos esta tradição de que a parte biológica está associada à medicina veterinária; afinal são doenças animais transmitidas aos humanos”, afirma.

“Temos também a parte química, em que os nossos oficiais e sargentos trabalham, as equipas são sempre constituídas com estas duas valências de biologia e defesa química”, revela.

Aumentar a actual capacidade de processamento de testes, insuficiente para as necessidades, não é fácil. O major Wilson Antunes reflecte sobre a questão, indiciando que houve estudo e ponderação.

Só com um sistema de automação, ou seja, investir em robots, e isso demora um tempo, para formar um sistema completo de um robot demorava um mês”, antevê. E os tempos são de urgência.

Consumíveis e descontaminação

Foi o Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge que validou a técnica laboratorial de diagnóstico de confirmação da covid-19 da Unidade Militar Laboratorial de Defesa Biológica e Química. Este foi o êxito da equipa dos militares. Mas não foi o seu principal desafio.

“Montar a técnica não foi um grande problema, porque temos grande experiência nessa área, já desenvolvemos a técnica”, assegura. O problema foi o mercado mostrar dificuldade em os abastecer do necessário. “O mais difícil foi ter reagentes pela quebra dos stocks”, recorda.

“Tentámos soluções caseiras, pois havia muita informação disponível na OMS sobre os alvos específicos que podíamos pesquisar”, enuncia. “Mandámos sintetizar um conjunto de moléculas, mas, em relação aos kits comerciais, requerem mais ajustes e controlos posteriores”, explica. 

A solução foi a de trabalhar com os kits comerciais, mas o recurso ao método caseiro permanece como reserva. “Só para uma situação de urgência”, como precisa o major Wilson Antunes.

A crise dos consumíveis foi difícil de ultrapassar e obrigou a grandes operações de logística. “Agora temos kits comerciais para duas mil reacções, mas já estamos a pedir mais, e duas mil unidades da solução caseira”, descreve. “Para nós, isto representa que estamos focados”, diz com vivacidade. Ou seja, que não desistem.

Os testes para o novo coronavírus, pela dificuldade em serem encontrados nos mercados internacionais em tempo de uma pandemia global, concitam a atenção no trabalho da Unidade Militar Laboratorial de Defesa Biológica e Química. Mas não são a única actividade imprescindível contra a covid-19 desenvolvida pelos militares daquela unidade.

“Para além dos testes, damos apoio à descontaminação, preparamos as unidades do Exército para essas operações, acompanhamos o pessoal e fazemos a validação dessas equipas, temos a capacidade de liderar este programa”, refere.

Os portugueses viram pela primeira vez esses militares em acção nos últimos dias quando, envergando roupa protectora, entraram nos lares da Santa Casa da Misericórdia de Resende e do Nossa Senhora das Dores, em Vila Real, para desinfectar instalações onde o novo coronavírus infectou idosos e funcionários e provocou a morte de alguns utentes. 

“Para esta acção específica, a formação foi de apenas dois dias, foi só fazer uma reciclagem”, diz o major Wilson Antunes ao explicar o modus operandi. No prazo máximo de uma semana consegue-se pôr uma equipa a funcionar”, assegura.

Neste caso, os consumíveis, o desinfectante, foi comprado no mercado. Mas também há uma solução caseira. “Desde 2009, desenvolvemos no Centro de Investigação do Exército um desinfectante que foi ajustado a este tipo de vírus e ao equipamento de que dispomos”, refere. “Fazemos muitos estudos em descontaminação biológica e química e vamos sempre fazendo ajustes”, conclui.

No mesmo recinto militar existe ainda o Laboratório Militar de Produtos Químicos e Farmacêuticos com uma linha de produção anticovid-19. Produz, actualmente, dois mil litros de gel desinfectante, mas com a compra, em curso, de mais equipamento vai aumentar a sua produção, seguindo as directrizes do Serviço Nacional de Saúde.

Aquela unidade produz também metadona, manipulados e os denominados medicamentos órfãos, assim designados por não existirem outras opções terapêuticas. 

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