Os animais precisam e merecem que eu não descanse nesta altura tão difícil
Testemunho de Marisa Quaresma dos Reis, Provedora Municipal dos Animais de Lisboa, jurista e docente no ensino superior. “É preciso não falhar no trabalho, não falhar àqueles que dependem de ti e, ao mesmo tempo, manter a casa limpa e arrumada, não deixar queimar a comida, enquanto atendemos um telefonema urgente ou mudamos uma fralda.”
Quando a instituição de ensino onde leciono me enviou uma mensagem, perto da hora de jantar, informando que as aulas presenciais seriam suspensas, preocupei-me. “Bolas, isto está a ficar a sério”, pensei.
Com a suspensão das atividades letivas de todos os graus de ensino no país, pouco tempo demorou até que, na minha segunda atividade profissional, tivesse de adotar também o regime de teletrabalho. Sendo mãe de uma menina de um ano e de um menino de três, não tive outra opção que não a de ficar a (tentar) trabalhar em casa e cuidar deles ao mesmo tempo.
Houve quem ficasse especialmente feliz com a notícia: as minhas meninas de quatro patas quando perceberam que iriam ter, finalmente, colo, comida e escravos 24 horas por dia.
Talvez os outros animais que, por força da minha função, tenho a responsabilidade de ajudar todos os dias tenham, por seu lado, ficado apreensivos. Ou então é o meu sentimento de impotência a falar. Numa altura em que os animais vão ficar mais vulneráveis do que nunca, a provedora tem de estar em casa. Como se lida com isto?
Por outro lado, a minha saúde, sendo doente crónica e atravessando uma fase menos estável, pareceu alegrar-se com a perspetiva de um certo abrandamento de ritmo. (Ou pensava eu.)
Poucos dias depois da minha vinda para casa, já se adivinhava, juntou-se a nós o meu marido. E, com isto, passámos a estar os oito, entre humanos e não humanos, em permanente convivência.
Não fossem os motivos tão dramáticos, até que o cenário, do ponto de vista estritamente pessoal e familiar, tinha muito de positivo. Um sonho do qual a realidade cedo nos acordou: por precaução, suspendemos o serviço de limpeza durante este período e, no mesmo dia, a engomadoria também suspendeu o serviço ao domicílio.
Mayday! Mayday! Ou como se diz em Portugal: “Pânico na aldeia!”
Subitamente, o cenário deixou de ser “filhos, marido, animais e flexibilidade no trabalho” e passou a ser “filhos, marido, animais, casa para limpar, roupa para passar a ferro, comida para fazer, conciliar tudo isto com o teletrabalho e conseguir, ainda assim, manter-me afastada do mundo do crime”.
As aulas à distância tiveram de ser substituídas por aulas gravadas durante o período da madrugada, quando todos dormem e se consegue usufruir de algum sossego nesta casa.
O teletrabalho na minha outra atividade desenvolve-se também nas horas de descanso dos meus filhos, o que implica que eu não descanse. Mas os animais precisam e merecem que eu não descanse nesta altura tão difícil.
“Vamos todos ficar bem… e eles também!”, é o mote da nova campanha da Provedoria contra o abandono de animais. No contexto atual, o cenário de abandono e maus tratos a animais nos outros países afetados pela covid-19 tem sido dramático e não me perdoaria se nada fizesse para que em Portugal fosse(mos) diferente(s). Também envidei esforços junto do Governo e das associações zoófilas para que as necessidades dos animais neste período de exceção sejam acauteladas. Como vivo o meu trabalho com espírito de missão, confesso que vivo dias de obsessão com estas preocupações, às quais dedico todos os períodos que, em circunstâncias normais, deveriam ser também de descanso. Só assim é possível. Só assim. E quem pensa que é possível ficar em casa em regime de teletrabalho e prestar assistência aos filhos é de uma ingenuidade atroz, ou não sabe o que é a vida.
Por esta altura, a cadela, a tartaruga e as gatas já perceberam que afinal estes não vão ser tempos tão idílicos quanto aquilo que elas projetaram e que terão de me partilhar com muitos outros animais (humanos e não humanos).
Ah… e ainda nem falei do impacto desta nova rotina no meu casamento. Nem uma semana passou e recordo várias vezes ao longo do dia a célebre frase de Joyce Brothers: “O meu marido e eu nunca considerámos o divórcio. Homicídio, às vezes, mas nunca o divórcio.”
Ninguém estava preparado para isto. É realmente duro, um teste à pessoa que pensávamos que éramos em todas as nossas dimensões.
É preciso abertura para o melhor e para o pior, para o que der e vier. É preciso estar-se bem, fazer com que os outros estejam bem, especialmente se os outros são os teus filhos.
É preciso não falhar no trabalho, não falhar àqueles que dependem de ti e, ao mesmo tempo, manter a casa limpa e arrumada, não deixar queimar a comida, enquanto atendemos um telefonema urgente ou mudamos uma fralda.
É preciso não comprometer a saúde, não massacrar (muito) o nosso casamento, é preciso ser-se forte e aguentar as saudades dos nossos pais e avós.
É preciso ser-se altruísta, solidário, empático, mas, ao mesmo tempo, otimista. E é preciso ser-se capaz de pôr em prática tudo isto. É preciso ter força para conseguir fugir do vírus e, muitas vezes, força para não explodir e ter vontade de o encontrar.
Tenho constatado algo de que já me apercebera ao longo da minha vida: que o humor é a melhor (e talvez a única) estratégia para lidar com a adversidade. É fundamental que não percamos o sorriso e que continuemos a fazer sorrir.