Ainda o “caso Matzneff”: Le Clézio demite-se do júri do Prémio Renaudot
Nobel da Literatura de 2008 demarca-se da obra do escritor acusado de apologia da pedofilia e já consagrado com esta prestigiada distinção das letras francesas.
O “caso Gabriel Matzneff” continua a provocar ondas de choque no meio literário em França. Depois da entrevista dada esta semana pela ex-jornalista Francesca Gee ao The New York Times, assumindo que também ela foi vítima de predação pedófila por parte daquele escritor francês, Jean-Marie Gustave Le Clézio, prémio Nobel da Literatura em 2008, anunciou esta quinta-feira que iria retirar-se do júri do Prémio Renaudot.
“Vou seguir o gesto de Jérôme Garcin”, disse Le Clézio ao jornal Le Figaro, ao qual deu uma longa entrevista publicada no mesmo dia em que viria a anunciar a sua saída do júri do histórico prémio literário francês.
Jérôme Garcin, escritor e jornalista (é o responsável pela secção de Cultura do Nouvel Observateur), demitiu-se no início de Março do júri do Renaudot invocando também o “caso Matzneff”, autor que em 2013 viu o seu ensaio Séraphin, c’est la fin! distinguido com o prestigiado prémio. Quando se demitiu, Garcin defendeu igualmente a necessidade de mais presenças femininas no júri – composto por dez membros, o júri inclui hoje apenas uma mulher, Dominique Bona, 66 anos, que foi também já distinguida com o Prémio Renaudot e é membro da Academia Francesa.
Le Clézio recorda agora ter-se também oposto na altura, “com força”, à atribuição do prémio a Matzneff, pois viu em Séraphin, c’est la fin! “uma apologia da violação”, num livro que diz ter lido “com muito nojo”. Mas não foi ouvido. E a carreira de Matzneff, que sempre fez a apologia do sexo com menores, tendo colhido os favores da intelectualidade francesa, continuou a fazer o seu caminho. Até que a publicação, no início de Janeiro, do livro Le Consentement, em que a editora Vanessa Springora denunciou a tortuosa relação que tivera com o escritor quando era ainda adolescente, veio mudar tudo.
Foi na sequência da divulgação dos testemunhos de Vanessa Springora e de Francesca Gee que Le Clézio decidiu igualmente bater com a porta ao júri do prémio – que também lhe foi já atribuído em 1963, pelo livro Le Procés-verbal (edição Gallimard). Nessa altura, o escritor de nacionalidade franco-mauriciana, nascido em 1940, era ainda um jovem homem de letras em início de carreira, mas que mais tarde haveria de ver a sua obra, já com mais de 40 títulos publicados, distinguida com o Nobel – e tem quase uma dezena da sua imensa bibliografia traduzida em Portugal, entre os quais os livros O Processo de Adão Pollo (Europa-América, 2008) e Raga. Abordagem do Continente Invisível (Sextante, 2008).
Gabriel Matzneff, hoje com 83 anos, tem julgamento agendado pela justiça francesa para Setembro de 2021, acusado de “apologia da pedofilia”.
O Prémio Renaudot é uma das mais importantes instituições literárias em França, historicamente ligado ao Goncourt, tendo nascido em 1926 a partir da iniciativa de um grupo de jornalistas e críticos que quiseram criar uma alternativa à política literária do mais antigo prémio literário do país. Ambos são anunciados no mesmo dia, no início de Novembro, após a reunião dos jurados no restaurante Drouant, no centro de Paris.