Autocertificação (III)
Cesariny escreveu: “Em todas as ruas te encontro / em todas as ruas te perco”. O que será de mim se, perdendo-me de ti em todas as ruas, nunca mais te encontrar?
Álvaro tinha muitas saudades da vida anterior à pandemia. Tinha saudades da sua infelicidade regrada, simétrica de outrora. A azáfama desses tempos, o cansaço agradável dos prazos a cumprir e o gozo de encaixar mil e uma tarefas umas nas outras, sem nunca falhar, como um malabarista experimentado, permitiam-lhe manter certos pensamentos no fundo de si. Esses pensamentos eram como baleias, só vinham respirar à superfície de vez em quando, só esporadicamente se mostravam. Ele entrevia-os, mas, com certo esforço, conseguia desviar a vista o tempo suficiente, e eles mergulhavam outra vez. Aprendera a conhecer-lhes os hábitos, sabia calcular com rigor quanto tempo decorria entre as suas aparições, conhecia perfeitamente os estímulos que os faziam emergir, quais os momentos do dia mais propícios às suas arremetidas. Agora, naquele mar parado e oleoso, os pensamentos incómodos e dolorosos ficavam ali, à tona, a arfar, o dia inteiro, a noite inteira. Pareciam um bando de toninhas encalhadas na praia, ao sol, a agonizar. Olhou para o gato, que se esgueirou para baixo da mesa antes que ele o conseguisse agarrar. Pensou: “O gato já não nos suporta. Deve pensar: ‘Mas esta gente não me desampara a loja, não me deixa em paz?’ Exactamente como eu, farto dos meus pensamentos negros. Não me largam da mão, não têm para onde ir.” Levantou-se, foi até à janela, logo recuou, agoniado perante o espectáculo da rua deserta, sem gente, só carros estacionados a perder de vista. “Onze dias de quarentena e já estou farto de mim. Já não me suporto.”
Pensou: “As coisas nunca mais vão voltar ao que eram antes. Temos tanto medo que, doravante, estaremos dispostos a aceitar crueldades que, há um mês, seriam impensáveis.” Os pensamentos negros saltavam em cardume ao encontro dele, não tinha nada para lhes opor, não se conseguia defender. “Se há um mês alguém nos dissesse: ‘Estás proibido de ver os teus pais por tempo indeterminado’, diríamos logo: ‘És maluquinho, não te admito que me dês ordens, vejo os meus pais quando muito bem entender.’ Agora, se nos proibirem de ir ao funeral dos nossos pais, obedeceremos. E esta crueldade que infligimos a nós próprios, por muito justificada que seja, irá multiplicar-se por cem, por mil, e estaremos dispostos a infligir crueldades dez vezes piores aos outros, se alguém nos garantir que essa é a única maneira de ficarmos a salvo.” O gato saltou para cima da mesa, olhou-o com o seu ar habitual de hipnotizador relutante. “Mas tudo”, pensou Álvaro, “se passará de um momento para o outro, sem darmos por isso. Acordaremos um dia, olhar-nos-emos nos olhos e não nos reconheceremos uns aos outros. E não saberemos dizer em que momento nos transformámos no que agora somos.”
Juntinhos
Foi ao supermercado com a mulher, a Cláudia, ficaram à espera na fila, lado a lado, avançaram aos poucos. Cada vez que saía uma pessoa, a empregada da caixa fazia sinal à pessoa seguinte da fila para entrar. Saíram duas pessoas, era a vez deles, a empregada mandou-os entrar, mas, ao vê-los caminharem colados um ao outro, de mãos dadas, disse-lhes:
— Não andem juntinhos, por favor.
Álvaro teve vontade de lhe dizer: “Sabe, nós dormimos na mesma cama”, mas depois achou que não valia a pena. “Este é o tempo do absurdo”, pensou. “E contra o absurdo não há argumentos.”
Saíram do supermercado, iniciaram o regresso a casa pelo caminho mais curto, com os sacos na mão. Ele disse a Cláudia:
— Falei com o Tiago.
O Tiago era um amigo que morava na Holanda.
— Disse-me que ontem, no supermercado, deixou cair ao chão uma lata de sardinhas, e um desconhecido que estava ali ao lado apanhou a lata do chão e pô-la no carrinho dele e sorriu para ele. Disse-me que, lá em Haia, as pessoas sorriem na rua umas para as outras. Viste as pessoas ali, no supermercado? — e apontou com o polegar por cima do ombro.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Gente crispada, tensa, sem nada para dar aos outros — acrescentou Álvaro.
Disse isto para que Cláudia o contrariasse, para que ela dissesse: “Olha que não, a rapariga da caixa sorriu”, ou coisa do género. Mas ela continuou a caminhar em silêncio. E ele prosseguiu:
— Além do mais, mesmo que sorrissem, em muitos casos não se daria por nada, porque mais de metade das pessoas, agora, anda de máscara. As pessoas deixaram de ter rosto. São pares de olhos apavorados.
Isto era o sinal para ela contrapor: “Mas os olhos também sorriem, sabes.” Em vão, porém. Ela não se deu por achada.
À porta do supermercado, um empregado distribuíra a cada cliente, na fila, um par de luvas de plástico transparente. Por enquanto, a máscara ainda não era obrigatória. “Lá chegaremos”, pensou Álvaro.
— Se me obrigarem a usar máscara, recuso-me a sair à rua.
Disse isto já em desespero, para espicaçar Cláudia, para a ouvir dizer: “Não recusas nada, deixa-te de fitas, usas a máscara e pronto. Se disserem que tens de usar, é para teu bem.” Mas ela continuou calada. Ao dar voz aos seus pensamentos negros diante da mulher, era como se Álvaro lhe apontasse um mosquito pousado na parede e lhe pedisse: “Mata-o, sim?” Cláudia era uma pessoa optimista, ele apaixonara-se pelo optimismo dela quando eram novos. Eram como Orfeu e Eurídice, mas os papéis estavam invertidos, sempre haviam estado. Era ele que se perdia nas trevas, era ela que descia com a sua lira em busca dele, que adormecia as feras com a sua voz, que o trazia consigo. Não raro, tinha de descer várias vezes no mesmo dia para o ir buscar. Mas nunca fraquejava, nunca perdia a fé, nunca olhava para trás no último instante, ao contrário do Orfeu da lenda, que, duvidando, deitou tudo a perder. Cláudia era uma Eurídice/Orfeu que nunca vacilaria, que nunca perderia a fé, que resgataria sempre o seu Orfeu/Eurídice.
Daquela vez, porém, Cláudia não disse as palavras certas, as frases justas, não forçou as baleias disformes, os monstros marinhos de Álvaro a mergulharem e a desapareceram durante umas horas, nem que fosse durante breves momentos. Parecia uma actriz esquecida das suas deixas, muda em palco, alheia aos sussurros em crescendo dos espectadores. Ficou muito tempo em silêncio. Por fim, disse:
— Só espero que esta pandemia não mate o século xx. Só espero que não mate todas as lições que esse século nos ensinou.
Ele nunca a ouvira falar assim. Normalmente, ela acudia-lhe de imediato, assim que o via preso nas suas areias movediças. Também ela conhecia os pensamentos negros de Álvaro como a palma da sua mão, sabia que, deixados à solta, podiam fazer estragos devastadores. Hoje, porém, havia nela qualquer coisa de diferente, uma relutância em se mostrar optimista, o ar assustado de quem acaba de receber a notícia da morte de um amigo de infância, alguém da nossa idade. Ele deu por si a dizer-lhe:
— Olha que não, também não exageremos.
Deu por si a içá-la das profundezas, coisa que nunca fizera, e a sensação foi estranhamente agradável. Deliciou-o, aquela inversão de papéis. “Não custa nada, afinal”, pensou. E depois reflectiu: “A pandemia é também isto, esta corrida ao armamento. Cada qual tenta subir a parada, mergulhar mais fundo no pessimismo. Noutros casos, noutros momentos, é o contrário, uma competição para ver quem é mais pueril, mais piegas, mais parvamente optimista.”
Tentou remontar às origens daquela mudança na postura da mulher. Não precisou de procurar muito, porque, no fundo, já sabia a resposta. Fora na antevéspera, quando pela primeira vez a vira, em casa, a abrir as portas com gestos atabalhoados, servindo-se dos cotovelos e dos antebraços, como uma aleijada, só para não tocar com as mãos nas superfícies metálicas contaminadas das maçanetas. E lembrou-se de que, naquele momento, ela o vira ali, a fitá-la, e olhara para ele por cima do ombro, com um ar meio envergonhado, o ar que ela fazia quando, a meio da noite, ele a ia surpreender na cozinha, de colher na boca, com uma lata de leite condensado aberta na mão. E lembrou-se ainda de que, ao vê-la assim, a desferir pancadas canhestras na maçaneta da porta da sala com o antebraço, lhe ocorrera uma imagem horrível, saída de um documentário sobre a Serra Leoa ou o Congo que vira em tempos: uma mulher a quem as crianças-soldados, encharcadas em drogas, tinham cortado as mãos. A guerra, sempre a guerra a colar-se, sorrateira, àquela pandemia.
Memória colectiva
Apesar do tom ligeiro com que se sentira forçado a rebater aquela ideia de Cláudia, ficou a pensar no que ela dissera, na possibilidade de a pandemia matar o século xx. Ele próprio já pensara o mesmo. O que mais o afligia era aquilo: o que a pandemia faria à nossa memória colectiva. “Se morrerem muitas pessoas, se o abalo na nossa sociedade e no nosso quotidiano for muito profundo e muito duradouro”, disse para consigo, “as grandes catástrofes do passado recente, cujos ensinamentos de sangue e dor formavam ainda uma ténue barreira contra a barbárie, serão suplantadas. A Grande Guerra, a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto, a Guerra do Vietname. Se este cataclismo mudar de alto a baixo a nossa vida quotidiana, os nossos hábitos, todo o sofrimento anterior será remetido, definitivamente, para o museu. Teremos com esses dramas longínquos a mesma relação que agora temos com as guerras napoleónicas. Quando vemos as histórias de Oitocentos nos filmes e nas séries de televisão, achamos os uniformes castiços, os trajes femininos encantadores, mas não percebemos lá muito bem o que é que aquela gente anda para ali a fazer, o que os move, o que os faz sofrer. Ou antes: os argumentistas e os realizadores dos filmes e das séries põem essa gente a pensar e a agir exactamente como nós, porque, se fossem fiéis à realidade e às mentalidades daquele tempo, ninguém quereria ver aquilo, ninguém entenderia, sequer, os raciocínios e as motivações daqueles nossos antepassados distantes. O mesmo se vai passar com o Holocausto: será uma coisa remota, atenuada, vai tornar-se decorativo, inútil. Não terá servido para nada.”
Depois pensou: “Mas isso já estava a suceder, é inevitável que aconteça.” Como se discutisse consigo próprio, contrapôs: “Mas ainda havia a memória dos sobreviventes.” E logo a outra metade acudiu: “Já não há sobreviventes da Grande Guerra. Já morreram todos, há décadas. E os sobreviventes da Segunda Guerra e do Holocausto não vão durar nem mais dez anos.” Ele próprio ripostou, já em desespero: “Há a memória dos filhos, dos netos.”
“Nunca mais”
Tivera tudo marcado, viagens de avião, hotel, carro alugado, para participar, com os amigos franceses, belgas, alemães, luxemburgueses, espanhóis, na marcha anual que assinalava, a 16 de Abril, o início da trágica ofensiva do Chemin des Dames, em 1917. Em 2019, ouvira os organizadores, ao almoço, a debaterem a melhor maneira de prosseguir com as comemorações dali em diante, e um deles dissera: “Não se pode comemorar o centenário todos os anos. É preciso reinventar a memória.” Agora, tudo fora cancelado. Em 2020, não haveria marcha da memória em Craonne, não se reuniriam ali pessoas vindas de toda a Europa para recordar a injustiça, o sofrimento dos mortos, dos feridos e dos estropiados de 1917, para repudiar a prepotência, a cegueira, a xenofobia, para reafirmar a amizade entre os povos, para dizer, mesmo que ninguém o clamasse com todas as letras, porque não era preciso: “Nunca mais.” Álvaro viu nesta anulação da marcha um prenúncio sinistro. Sabia que há coisas que, uma vez interrompidas, nunca mais recomeçam. Que há raciocínios e sentimentos que, quando se dissociam, nunca mais se tornam a cruzar. Que a memória é uma planta frágil, muito delicada, que não tolera mudanças bruscas na humidade, na luz, na composição do solo em que medra.
Era isto que não perdoava àquela pandemia. Por trás da aparente paralisia do tempo, o vírus ocultava, pelo contrário, uma aceleração vertiginosa do tempo. Também por isso, ou principalmente por isso, aquela doença era traiçoeira. Simulava uma coisa e fazia, a coberto do disfarce, outra bem diferente. E, por fim, não lhe perdoava ter surgido naquele momento, não ter esperado cinquenta ou sessenta anos, tê-lo obrigado a presenciá-la, ter-lhe servido aquela angústia, ter-lhe dado a ver certas coisas. Não perdoava àquela pandemia não ter esperado que ele morresse para acontecer.
Pensou nos veteranos da guerra colonial, nos retornados de África, pessoas que eram reservatórios vivos de memórias insubstituíveis. Mais do que vê-las morrer da pandemia, temia que as memórias, as vivências delas, que sempre tinham sido relegadas para os rodapés do nosso imaginário, se tornassem agora definitivamente anacrónicas, submergidas pelo tsunami de emoções, de acontecimentos que aí vinha. Anacrónicas como uma ampulheta ou um mata-borrão numa unidade de cuidados intensivos. Anacrónicas como os ademanes de alegria e ódio dos actores dos filmes mudos, que não nos emocionam nem comovem, apenas nos fazem sorrir com comiseração.
Já em casa, lembrou-se do tio de Carlos, um homem chamado Jorge, veterano da guerra colonial, da Guiné. Encontrara-se com ele uma vez, há uns meses, num almoço de fim-de-semana em casa de Carlos. Jorge contara meia dúzia de histórias da guerra, as suficientes para Álvaro querer saber mais. Sempre que podia, conversava longamente com veteranos da guerra colonial, extraía deles todas as histórias, todos os pormenores, não se dava por satisfeito enquanto eles não lhe contavam as mesmas histórias várias vezes, enriquecendo-as com pormenores de que talvez eles próprios se tivessem há muito esquecido e que só ele, com as suas perguntas, os fazia recordar. Não se dava por satisfeito enquanto eles não lhe contavam histórias que nunca tivessem contado a ninguém. Gostava de pensar em si próprio como um depositário de memórias únicas. Via-se na pele de um cronista, e aqueles homens eram reis ou príncipes. Via-se na pele de um portador de segredos alheios, alguns inconfessáveis. Como se dissecar os demónios dos outros o ajudasse a esquecer os seus. Dissera a Carlos: “Temos de ir falar com o teu tio um dia destes, só nós os dois e ele. Sem mulheres. Para ele nos contar tudo.” Mas os dias tinham passado, depois os meses, e essa conversa fora sendo sucessivamente adiada.
Ligou a Carlos, disse-lhe que era urgente irem falar com o tio dele. Carlos cortou:
— Estás maluco, não?
Álvaro jogou friamente as suas cartas. Planeara bem a conversa, sabia, em traços gerais, como o amigo ia reagir. Disse-lhe que o tio era um idoso, um viúvo que morava sozinho, que precisava, certamente, de assistência. Sabia que a prima de Carlos, filha única de Jorge, vivia na Bélgica há muitos anos, não estava em Portugal. Carlos hesitou um pouco.
— Ainda ontem falei com ele — disse — e estava tudo bem.
Álvaro contrapôs que não havia nada como verificar in loco.
— Eu não vou entrar em casa de um homem de setenta e tal anos, não sou nenhum irresponsável, ouviste? — atirou Carlos.
Álvaro disse-lhe: “Falamos com ele da rua, não é preciso subirmos.”
— “Falamos”? — Carlos pareceu estupefacto. — Mas o que é que tu vais lá fazer?
— Ele tem de me contar... de nos contar as histórias da guerra colonial — disse Álvaro. — Antes que seja tarde.
— Há muito tempo para isso, quando esta história passar — respondeu Carlos, com ar de quem quer acabar a conversa. Mas Álvaro sabia que o amigo tinha tempo de sobra e que se aborrecia em casa, apesar dos pavores. Jogou então a cartada decisiva, um golpe baixo, espúrio.
— Não és tu que dizes que estamos em guerra? Se assim é, precisamos de colher os ensinamentos das outras guerras, junto de quem as travou.
Carlos pareceu aborrecido:
— Não faças de mim parvo. Isso não tem pés nem cabeça.
Mas a tolice daquele argumento deu-lhe a medida certa da ânsia de Álvaro. Se este lançava mão de uma jogada tão reles, tão estapafúrdia, é porque estava mesmo desesperado. Ainda relutante, cedeu:
— Vamos lá. — De imediato, como quem se arrepende, declarou: — Mas não vais comigo dentro do carro, nem penses.
Naquela tarde, à hora marcada, Carlos parou o carro à porta do prédio de Álvaro e buzinou. Álvaro desceu, aparelhado com os requisitos que o amigo lhe exigira: luvas de borracha, máscara cirúrgica. Cláudia fizera troça dele ao vê-lo amarrar os atilhos da máscara atrás da nuca: “Para quem jurou que nunca sairia à rua de máscara...” Mas logo parou de troçar, porque percebeu o quanto aquilo custava ao marido. Álvaro deitou-se na bagageira, que Carlos tornara o mais confortável possível, pondo ali dois cobertores e uma almofada.
— Estás bem? Atenção às mãos e aos pés! — E Carlos fechou com estrondo a tampa da bagageira. Havia gente às janelas, a assistir ao espectáculo, como no tempo em que as pessoas se punham ao parapeito, “a ver passar”, a vigiar a vizinhança.
Na penumbra da bagageira, encostado aos bancos traseiros do carro, sentindo debaixo do corpo encolhido as reentrâncias do pneu sobresselente, da caixa do triângulo, Álvaro passou em revista todos os filmes de que se conseguia recordar nos quais alguém era trancado numa bagageira, e concluiu que, em todos eles, sem excepção, esse pobre diabo acabava por morrer, abatido a tiro. No fim da viagem, havia um plano negro, filmado do interior da bagageira, depois ouvia-se o estalo do fecho a abrir-se, o ecrã enchia-se de luz, alguém levantava a tampa e dava um tiro no fulano. Ou então arrancava o desgraçado da bagageira para o matar dali a pouco, num armazém ou numa casa abandonada. Deixar-se fechar na bagageira de um carro era uma condenação à morte sem apelo nem agravo. O carro embalava-o. Sabia que a viagem ia demorar uma meia hora. O tio de Carlos morava na Costa da Caparica. Ouviu ao longe a voz do amigo, através da frincha entre os dois bancos traseiros do automóvel:
— Se te sentires mal, avisa, que eu arranjo maneira de parar. Desculpa lá isto, mas tem mesmo de ser assim. Tenho de pensar nos meus. Dizem que, em ambientes fechados, o contágio é tremendo.
Álvaro fechou os olhos. Perguntou a si mesmo porque é que aceitara viajar naquelas condições degradantes, burlescas, absurdas. Percebeu que precisava imperiosamente de falar com Jorge, o veterano do Ultramar, porque só isso faria submergir os pensamentos negros que agora o assaltavam, e que Cláudia, pela primeira vez, se mostrava incapaz de domesticar. À hora do almoço, falara com um amigo americano do Tennessee, Walt, que lhe contara que, por lá, havia uma corrida às lojas para comprar papel higiénico, líquido desinfectante e enlatados, mas também armas de fogo e munições. Que os armeiros se tinham preparado para o aumento das vendas, porque a Wal-Mart deixara de vender certos géneros de munições, mas que a maioria já tinha esgotado os stocks. Walt contou-lhe que, segundo lera no jornal, muitos cidadãos impedidos por lei de terem armas de fogo, por causa de delitos menores, se apressavam agora a contratar advogados, exigindo ao governo estadual que revogasse essa interdição, para poderem “defender as famílias” perante o que aí vinha. No Tennessee, as pessoas preparavam-se para a pandemia como quem se prepara para uma invasão de mortos-vivos. E Walt dissera-lhe, no final da conversa: “Espero que as pessoas, noutros lugares, tenham mais bom senso.” A recordação dessa conversa telefónica esfumou-se, e Álvaro lembrou-se então do que realmente o incomodava, do monstro marinho negro, mutante, imundo, que ele tanto se esforçava por não ver desde aquela manhã. Ali fechado na bagageira bafienta, a cheirar a óleo e a coisas velhas, rendeu-se àquela recordação, deixou de lutar.
Fora no regresso do supermercado. Depois de ter dito a Cláudia aquele “olha que não, também não exageremos”, tão pouco habitual nos seus lábios, ele detivera-se a ajeitar as compras dentro do carrinho a transbordar, ao perceber que os solavancos na calçada, cheia de altos e baixos, se arriscavam a fazer cair uma caixa de flocos de milho. Cláudia seguiu em frente, afastando-se meia dúzia de metros, e, ao erguer os olhos, Álvaro viu surgir um homem novo que caminhou direito a ela, como se tivesse brotado do chão. Como se viesse incumbido de uma missão bem precisa.
— Arranja-me uma moeda para comer? — pediu o desconhecido, parado a quatro ou cinco passos de Claúdia.
E ela disse-lhe:
— Eu dou-lhe, mas fique aí.
Havia nos gestos dela laivos de marioneta desarticulada, como se tivesse visto surgir na sua frente, sem mais nem menos, um tigre ou um leão, e, quase paralisada de medo, tentasse aplacar a fera. A voz saiu-lhe desafinada, como se tivesse corrido muito. Com mãos atabalhoadas, tirou o dinheiro da carteira e, sem nunca desviar os olhos do homem, pousou a moeda em cima do rebordo de pedra da vitrina de uma sucursal bancária. Com a precipitação, a moeda ressaltou e caiu na calçada, e Cláudia hesitou, sem saber se a devia apanhar e tornar a pôr no rebordo de mármore, temendo que o homem se aproximasse. E, ao ver o desconhecido a inclinar-se ao de leve para diante, embora ele se mantivesse à mesma distância, ela desatou, literalmente, a fugir em passo apressado pela rua acima. O mendigo avançou para o lugar onde a moeda caíra e agachou-se, a procurá-la, interpondo-se agora, com a massa do seu corpo, entre eles os dois. Só então, como se apenas naquele momento se lembrasse de Álvaro, Cláudia olhou por cima do ombro, fitando-o de relance, antes de continuar em frente, agora quase a correr. E o que Álvaro viu nos olhos dela, naquele breve instante, foi algo que nunca tinha visto até então. Foi como se os olhos dela lhe dissessem: “Se não apertas o passo, deixo-te aí.”
Deitado no fundo da bagageira, com os joelhos encostados ao peito, a ouvir aquele raspar cadenciado dos pneus no piso de ripas metálicas da faixa da direita da Ponte 25 de Abril, Álvaro pensou: “O que matou Eurídice pela segunda e definitiva vez, quando Orfeu olhou para trás, quase a sair dos Infernos, não foi a maldição de Perséfone. Bem conversados, os deuses gregos deixavam-se quase sempre comover, era possível dar-lhes a volta. O que a matou, o que a fez deixar-se morrer, foi perceber que Orfeu já não era o mesmo, que ele aguentara até onde pudera, mas que o seu alento se exaurira e que todo aquele esforço lhe começava a pesar. O que a matou foi ver nos olhos de Orfeu este sopro apavorado e um tudo-nada impaciente: “Não te posso ajudar mais. Se não te despachas, deixo-te aí.”
- Autocertificação (I)
- Autocertificação (II)
26 de Março de 2020
paulo.almodovarfaria@gmail.com