Miguel Maravalhas saiu em liberdade quando na cadeia se espalhou o pânico
As directivas da Direcção-Geral de Saúde e o plano de contingência para o sistema prisional não tranquilizam os reclusos. Serviços Prisionais garantem que não há nenhuma caso positivo de covid-19 em prisões portuguesas. Foram feitos testes mas não dizem quantos nem em que estabelecimentos prisionais.
Depois de cumprir uma pena de cinco anos e meio, Miguel Silva Maravalhas saiu na altura certa – quando o medo de um contágio pelo covid-19 começou a invadir Santa Cruz do Bispo, a prisão onde esteve, e as restantes cadeias do país.
No dia em que foi libertado – 15 de Março – já há mais de um mês que tinha sido divulgado um plano de contingência para o sistema prisional, de forma a evitar o contágio pelo novo coronavírus. Estava-se na fase de contenção. A partir de 9 de Março, foram proibidas as visitas nos estabelecimentos prisionais do Norte e reduzidas as visitas nas restantes.
Uma semana depois, as visitas foram sendo gradualmente suspensas, até a suspensão se alargar a todas as cadeias bem como aos centros educativos, onde estão a cumprir medidas tutelares educativas jovens que cometeram actos considerados crime entre os 12 e os 16 anos.
Miguel Maravalhas reconhece que “eles” – os responsáveis – “estavam a tentar organizar aquilo da melhor maneira”. Por exemplo com a quarentena de 14 dias imposta aos reclusos que voltavam à cadeia depois de saídas precárias a casa (saídas jurisdicionais aprovadas nalguns casos em que o recluso já tenha ultrapassado uma determinada fase da pena com bom comportamento).
Pavilhões instalados
Como explicou a Direcção-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP) por e-mail, para dar garantias, esse isolamento de duas semanas é também aplicado “com o devido acompanhamento clínico” nos pavilhões reservados para os novos presos e colocados junto a algumas prisões.
Os Serviços Prisionais e o Ministério da Justiça continuam a assegurar que foram feitos testes e que “não existe qualquer caso positivo” em estabelecimento prisional ou educativo, até ao momento em que foi enviada a resposta, na tarde desta sexta-feira. Mas não esclarece quantos reclusos foram submetidos a essas análises de despistagem do novo coronavírus.
No entanto, do terreno chegam relatos muito diferentes e rumores de um ou outro caso positivo. Neste sábado, circulava a informação de que uma auxiliar de acção médica do Hospital Prisional São João de Deus em Caxias estaria infectada, o que o PÚBLICO não conseguiu confirmar junto das autoridades.
"Pânico na cadeia"
Num vídeo gravado numa prisão não identificada, um preso de cara tapada também diz para a câmara: “Temos um caso confirmado de coronavírus”, depois de se apresentar – “daqui um recluso, um de muitos” – e antes de se insurgir. “A única coisa que nos dizem é que se houver um caso confirmado, são 14 dias de isolamento. Vamos ficar aqui todos fechados. Vai virar o pânico nesta cadeia.”
E denuncia: “Não há higiene, desinfecção, nada. Estamos em isolamento na nossa cela por iniciativa própria.” Mostra-se revoltado com “a falta de atenção do Estado para com os presos”. Eleva a voz trémula. “Sabemos que entrámos nesta cadeia saudáveis. E agora?”
“Há razão para ter medo”, diz Miguel Maravalhas, que já está fora, mas compreende o pânico de quem está fechado. A não ser o cuidado por ele testemunhado com a aplicação da quarentena de quem entra pela primeira vez na prisão ou de quem beneficiou temporariamente de uma saída precária, diz que quase tudo torna mais real a ameaça de um contágio.
As aulas e outras actividades foram também suspensas. Mas guardas, educadores, técnicos de reinserção, e funcionários da cozinha e de departamentos das prisões mantiveram a sua rotina de entradas e saídas. “As doutoras, técnicos, guardas e restantes trabalhadores, civis. Não há forma de saber se essas pessoas estavam ou não infectadas”, relata.
Para o bem de todos
Foi a partir daí que as pessoas começaram a ficar revoltadas, recorda. “Esses contactos mantinham-se quando já não podíamos receber visitas. Era para o bem de todos. Mas então por que motivo não fizeram nada para limitar os outros contactos?”
Enquanto lá esteve, pelo menos, a limpeza continuou a ser feita da mesma maneira: a prisão disponibiliza sabão e lixivia, para a lavagem das celas pelos reclusos que têm que comprar no bar os restantes produtos de limpeza. “A prisão dá um sabonete, uma pasta e escova de dentes, duas gillettes azuis de barbear de 15 em 15 dias, mas só aos presos que não recebem visitas. Só quem não tem ninguém.”
A penúria é generalizada. E quando um problema é resolvido, surgem outros. Em Dezembro do ano passado, a enfermaria teve de ser encerrada, porque não havia espaço para todos os doentes e não havia condições de higiene. Fecharam a enfermaria e todos foram transferidos para o espaço mais amplo que era até então a Unidade Livre de Drogas que deixou assim de existir, conta Miguel.
Garantias dos serviços
Para dar resposta de “internamento de reclusos que eventualmente venham a acusar positivo, foram criadas duas enfermarias de retaguarda, uma no Estabelecimento Prisional do Porto e outra no Hospital Prisional de São João de Deus em Caxias”, informa a DGRSP. Além disso, tem disponíveis “os pavilhões de segurança do Estabelecimento Prisional do Linhó e do Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira para o caso de necessidade”.
Mas não convence: “Bastaria um caso positivo para contaminar alas inteiras ou pavilhões”, diz Miguel repetindo o que ouviu dentro da prisão. O problema, continua, é “o antes de estar contaminado, o não ter sintomas, o poder contagiar” de forma silenciosa. “Isso não está a ser prevenido.”
Mais de 60 anos
Os Serviços Prisionais dizem-se, no entanto, preparados; por exemplo através da coordenação com a Protecção Civil e as Forças Armadas que poderão disponibilizar mais tendas, “caso venham a tornar-se necessárias”, além das que já cederam e que estão instaladas no Hospital Prisional de São João de Deus em Caxias.
Garantem, por outro lado, que tomaram outras precauções: os horários das rotinas diárias foram reajustados para “procurar separar dos restantes reclusos, o mais possível, as pessoas que a Direcção-Geral da Saúde considera mais vulneráveis” – pessoas com idade superior a 60 anos, com imunossupressão ou doença crónica, como doença respiratória, hipertensão e diabetes.
Em Dezembro de 2018, de acordo com as estatísticas oficiais disponíveis no site, havia 12.039 presos e 830 tinham mais de 60 anos.