O outro (terrível) vírus do coronavírus
Os testes iniciais da Europa e da América foram positivos ao vírus da inconsciência, da irresponsabilidade, da estupidez e da cegueira que ataca o coração da democracia.
Ninguém sabe ao certo como e quando terminará a pandemia da covid-19. Mas muito menos se sabe sobre o mundo emergente desta crise sanitária que, com excepção da Antárctida, atinge já todos os continentes. Apenas sabemos que será, quase de certeza, um mundo muito diferente daquele que conhecemos – e receia-se que bastante pior, se não tivermos aprendido com as múltiplas lições desta experiência assustadora. Mais concretamente: corremos o risco de ser contaminados por um outro vírus terrível, mais terrível ainda do que este coronavírus.
A lição que hoje parece mais relevante à escala global tem a ver com a forma como o país onde a pandemia começou, a China, passou de responsável pela ocultação prolongada do vírus – e, logo, pelos efeitos da sua expansão vertiginosa através do mundo – ao estatuto de providencial agente da solidariedade internacional, nomeadamente em relação ao primeiro país europeu atingido em cheio pela covid-19: a Itália. O mesmo país, note-se, a que a União Europeia não foi capaz de prestar ajuda nas tão dramáticas horas iniciais do surto epidémico, num gesto revelador do que depois iria passar-se em relação aos “eurobonds". Este instrumento financeiro considerado indispensável por um grupo de países, entre os quais Portugal, para enfrentar as tremendas repercussões económicas e sociais da crise, seria inicialmente rejeitado pelos habituais vigilantes da ortodoxia eurocrática, definitivamente incapazes de apreender a dimensão única da tempestade que estamos a atravessar.
Entretanto, à imagem da desunião europeia, os estados desunidos da América expuseram-se também ao vírus importado inicialmente da China. E a forma alarve e xenófoba como Trump começou por referir-se ao “vírus chinês” acabou por favorecer o alvo da provocação. Não só porque a retórica anti-chinesa era contraproducente – e foi, de resto, criticada por aliados de Trump – mas porque lhe faltava o essencial: a informação e a pedagogia necessárias para denunciar o regime autocrático chinês como responsável original pela ocultação prolongada da epidemia e a reacção tardia à sua expansão. Em vez disso, a China pôde reaparecer em pose virtuosa, controlando aparentemente a situação interna e predispondo-se a ajudar outros países infectados, enquanto os Estados Unidos não só persistiam na sua postura de costas voltadas para o resto do mundo como, além disso, mostravam uma dramática incapacidade de gerir a calamidade sanitária nacional – incapacidade devida notoriamente à cegueira e falta de liderança de Trump, em ruptura com grande parte dos governadores estatais. Não por acaso, situação idêntica iria reproduzir-se, de forma ainda mais grotesca, no Brasil, com o cafajeste Bolsonaro também em guerra com os governadores dos Estados, enquanto aparecia em público envergando a máscara de protecção quase em simultâneo com os seus anúncios cépticos de suspensão da emergência.
Se tantas democracias parecem mostrar-se aflitas, desesperadas e caóticas perante o desafio da covid-19, a tentação pode ser forte para legitimar a maior resiliência dos Estados autoritários perante uma crise desta natureza (ou outras que venham a seguir-se), nomeadamente o mais poderoso deles todos – e onde, afinal, tudo começou. Ora isto será tanto mais verdadeiro quanto mais se manifestarem as fragilidades e renúncias do espaço democrático – desde os Estados Unidos à União Europeia – na ocupação do vazio que ameaça instalar-se.
António Costa foi justamente elogiado por ter considerado “repugnante” a forma como o ministro das Finanças holandês pretendeu culpabilizar a Espanha “por não ter margem orçamental para lidar com a crise provocada pelo novo coronavírus”. Infelizmente, essa atitude não é apenas repugnante, mas suicidária. É consequência de um vírus que ameaça ser bem mais letal do que a covid-19 que infectou Boris Johnson e, eventualmente, o seu “Brexit”. É o vírus da inconsciência, da irresponsabilidade, da estupidez e da cegueira que ataca o coração da democracia. Os testes iniciais da Europa e da América foram positivos.