As dores de viver e construir em comum na BD de Gonçalo Duarte
Livro de estreia de Gonçalo Duarte, Parícutin é uma preciosa banda desenhada que nos fala das dificuldade e dilemas do que é edificar projectos em conjunto, casas que todos possamos partilhar. Contra a desilusão e o desencanto.
Um homem vê-se confrontado com a erupção de um vulcão. Um cenário infernal cuja razão não entende. Outro homem, dir-se-ia mais uma criatura humanóide, quer construir uma casa. Frustrado, reconhecerá o falhanço da empreitada e aquela acaba destruída. É deste universo, estranho, mas não totalmente insólito, que é feito Parícutin, banda desenhada de Gonçalo Duarte (Setúbal, 1990).
Obra em que o fantástico permite falar de realidades e experiências muito humanas: viver em conjunto, habitar uma casa comum, partilhar o mesmo mundo. Desde já, importa sublinhar que esta BD não é das mais convencionais. Heterogéneo, irrequieto, o desenho flui numa diversidade de registos gráficos e narrativos, por vezes desconcertante. Há experimentação, composição, gosto pela capacidade expressiva da banda desenhada, mas, também, uma sensibilidade à vida difícil de todos os dias.
Depois de vários anos na produção de fanzines e na colaboração em antologias de banda desenhada, Parícutin, numa edição da Chili com Carne, é o livro de estreia de Gonçalo Duarte. “Demorei seis meses a fazê-lo”, recorda o autor. “Houve interrupções, pausas. Por isso, também, cada capítulo corresponde a um registo. Enquanto desenhava, ia fazendo outras coisas, como ilustração, design gráfico. Há coisas dessas actividades que ia trazendo [para Parícutin]. Técnicas, como a tinta-da-china, imagens como a da capa, que veio de um trabalho de ilustração”.
O lugar de Gonçalo Duarte é, em termos estéticos, indefinível. Situa-se algures na confluência de artes, entre universos. Próximo do circuito dos fanzines, participou nas antologias Destruição ou BDs sobre como foi horrível viver entre 2001 e 2010, Futuro Primitivo, Viagem de Estudo ao Milhões 2017 e Pentângulo. É guitarrista nas bandas portuenses Equations e Live Low (com discos editados pela Lovers & Lollypops) e dirige uma oficina de gravura.
Banda desenhada, música, gravura, desenho. É naquilo que liga estas artes (uma vibração!) que entrevemos uma entrada possível em Parícutin, que abre com a erupção do homónimo vulcão em 1943, no México. Um homem foge da lava, das cinzas e do fumo que, do nada, destroem os seus campos de milho e afugentam a sua família. Sobre o papel, a grafite traça o avanço negro da lava, num estilo quase realista que não mais voltará.
“Esse capítulo funciona como uma introdução”, conta Gonçalo Duarte. “Inspirei-me muito em registos fotográficos da erupção, mas, depois, não tive grandes preocupações anatómicas na representação das figuras. Queria que fosse divertido desenhar. Há personagens que são feitas de riscos, linhas. Mais do que desenhá-las detalhadamente, quis exprimir ideias.” Que ideias? Ao fim de várias leituras, elas vão emergindo: as de bem, de casa e vida comum, de partilha, de construção, de comunidade. “Quis fazer um paralelismo entre a erupção e a construção de um prédio a que fui assistindo todos os dias”, explica. “Esteve a ser construído diante da minha casa. Via-o todos os dias, assim que acordava. O assentar de tijolo, o colocar do cimento.”
O processo despertou-o para uma hipótese. “Fiquei a pensar... Talvez não fosse uma coisa tão difícil de fazer. Uma experiência menos longínqua do que à partida supunha. Sempre estive ligado a colectivos e a associações, e quis explorar a ideia trabalhar para o mesmo fim, para um bem comum”.
Estás à vontade para aparecer
Em Parícutin, uma personagem (sem nome) persegue esse horizonte na construção de um prédio que pode ser usado por várias pessoas e de várias maneiras. O sonho é o de fazê-lo juntos, construindo uma casa, a nossa própria casa. Mas aos poucos os mal-entendidos, a desilusão e o tédio vão-se instalando. Só há uma chave para a porta daquela construção e a ideia de comunidade recua para a solidão do individual.
“Há outro lado da moeda nessa utopia”, medita o autor. “Não é fácil liderar ou guiar um colectivo, colocar 20 pessoas de acordo. Surgem dificuldades com as quais não conseguimos lidar. Este livro acaba por ser um reflexo da minha experiência de trabalhar com as pessoas. Na teoria, gosto muito dessa ideia, da possibilidade fazermos coisas juntos. Mas na vida concreta, essa utopia está sempre ameaçada pela desilusão”.
As páginas finais sugerem o falhanço irredutível desse projecto. A casa é inundada pelo fumo negro da tinta, incendeia-se entre culpas e acusações. Diante de tal cenário, ainda há alguém que se interrogue, com sarcasmo: “Mas a paisagem ficou bonita, não achas?”. O que sobra é uma torre isolada de onde saem chamas, relâmpagos. “Trabalhar em conjunto não significa um desfecho positivo. Trabalhar em colectivo não é fácil, nunca é fácil”, conclui o autor.
Voltamos às páginas finais, com o negro a tornar-se fundo, já sem figuras ou personagens. Gonçalo Duarte insiste que não se trata de uma ideia apocalíptica ou pessimista, que o livro apenas transfigura experiências passadas, mas que, acrescentaríamos, continuam pertinentes e vivas. Daí, o significado da permanência do seu trabalho com os outros.
“Continuo a tocar música com os Equations e os Low Life e a acompanhar o trabalho do Brian Chippendale [autor de BD, baterista dos Lightning Bolt que já trabalho com Bjork], do Raymond Pettibon [artista que fez a capa dos disco Goo, dos Sonic Youth, e One By One dos Foo Fighters] e do Francisco Sousa Lobo e do Pedro Burgos [autores portugueses]. São influências, como são as capas de muitos discos.” É precisamente com estas influências que Gonçalo Duarte também vai construindo a sua comunidade, habitando com ela o mesmo mundo, e participando, com as suas fábulas desenhadas, no bem comum. E àquela personagem que diz que estão reunidas as condições para que tudo corra mal, haverá outra que, páginas à frente, pode responder: “Eu vou estar cá todos os dias. Estás à vontade para aparecer.”