Telmo Pires: “O fado é uma música muito pura, a melodia e a palavra”
Ao terceiro disco, o fadista Telmo Pires quis ater-se à pureza da música que abraçou. Através do Fado é a nova proposta de um transmontano que passou quase toda a vida na Alemanha e que há dez anos vive em Lisboa.
Nasceu em Bragança, viveu 34 anos na Alemanha e está há uma década em Lisboa, onde já gravou três discos: Fado Promessa (2012), Ser Fado (2016) e Através do Fado, que foi este ano lançado nas plataformas digitais e também em CD. Telmo Pires, que nos meios fadistas começou por ser apelidado “o alemão”, voltou a trabalhar neste seu disco com o violoncelista e compositor Davide Zaccaria, um italiano radicado em Portugal, e de novo como produtor.
“A minha ideia, no final de 2018, foi começarmos a lançar singles”, diz Telmo ao PÚBLICO. E assim foi: “Gravámos o primeiro single, um tema meu, Era uma vez, fiz um vídeo, correu muito bem e tive um feedback enorme.” Foi escrito em dois dias e, no seu tom crítico, vem na senda de fados como a Casa da Mariquinhas (vou dar de beber à dor), cantada por Amália: “Eu moro na Graça, que não era muito turística, era um bairro de trabalhadores. Nos últimos anos, isto rebentou e eu noto muito essa diferença. Na minha rua, os senhores que viviam cá ou já morreram ou saíram e metade da rua é Airbnb, como em toda a cidade. Por outro lado, é uma brincadeira também. Eu sei que há vários problemas devido ao excesso de turismo, que não há casas, que as rendas subiram incrivelmente, há quem pague 400 euros por um quarto quando eu pagava 400 euros pelo meu apartamento no centro de Berlim! Isto é exagerado! Eu agradeço o turismo, toda a gente agradece, mas tudo tem o seu limite. Lisboa era frequentada por causa do seu charme único e agora está a tornar-se uma Disneylândia. As casas em Alfama estão todas renovadinhas, mas não moram lá portugueses, são hostels.”
O segundo single foi um tema de Amália (aliás o disco inclui outro, Oiça lá ó Senhor Vinho), gravado e lançado antes do centenário: “Tentei tirar-me dessa confusão toda, fiz a minha homenagem (que faço todos os dias, sem precisar de esperar por 2020) e gravei o Medo, que é um tema que eu adoro, do Reinaldo Ferreira e do Alain Oulman. Gravei-o só com os meus três músicos e lançámo-lo em Maio de 2019, como single” O terceiro single foi o tema que abre o disco, Só o meu canto, composto de parceria com a pianista alemã Maria Baptist: “Foi um tema que eu gravei em 2009 num álbum com a Maria, em Berlim, onde gravámos onze temas só com voz e piano (ela é pianista de jazz). Quando vim a Portugal, em 2011, foi até com esse álbum que fui convidado pela primeira vez a ir à RTP. Agora tentámos recuperá-lo e gravá-lo com arranjos de fado, com viola, guitarra portuguesa e baixo.”
Fados e outras canções
Mas se o disco abre com um tema de Telmo, fecha também com outro dele, No espelho, com música do Fado Vianinha: “Foi uma coisa muito espontânea. Eu tinha duas estrofes há já algum tempo, e quando recomeçámos as gravações acabei-a em estúdio. E decidi com o Davide cantá-la a capella, com a ideia de abrir os concertos com ela, fazendo completamente o contrário do que sucede no disco: no CD fecha, em palco abre, e também a capella.”
A par do Vianinha, o disco inclui ainda outros três fados tradicionais: o Menor do Porto, o Cravo e o Lopes, o primeiro dos quais num fado que o encantou, Minha mãe eu canto a noite, com letra de Vasco de Lima Couto “Eu já o conhecia, da rádio. Mas só ao ouvir a Maria da Nazaré cantá-lo, na [casa de fados] Maria da Mouraria, é que a música me tocou. E aí fui pesquisar, ver a autoria, a letra. Ela canta-o no Fado Menor, eu escolhi o Menor do Porto.”
Há também, e aqui é uma coincidência, duas canções que saíram vencedoras no Festival RTP da Canção, Uma flor de verde pinho, de Manuel Alegre e José Niza, defendida por Carlos do Carmo em 1976; e Silêncio e tanta gente, de Maria Guinot, que a cantou no festival em 1984. Telmo explica que as gravou pelo que lhe diziam, não pelo festival: “Houve duas vozes que me levaram ao fado, em miúdo, e que redescobri na adolescência, quando andava a tocar em bandas de rock e a fazer teatro: Amália e Carlos do Carmo. E esse tema, que eu já cantei várias vezes ao vivo, é uma canção linda, uma das melhores da música portuguesa. Acho que foi o primeiro tema que ouvi na voz do Carlos do Carmo. Ainda hoje, ao escutar o início da versão original, fico arrepiado.” E Silêncio e tanta gente? “Adoro essa música. Foi uma coisa muito corajosa, nos anos 80: ela sozinha ao piano, com duas raparigas no coro, a cantá-la ao vivo. Achei uma coisa completamente diferente e única.”
O disco conta ainda com um fado com letra de Tiago Torres da Silva, Sem peso ou medida. Telmo já o conhecia, mas nunca cantara nada dele. E gravou-o devido a uma curiosa história. Um artista da Austrália que estava a fazer uma residência artística em Lisboa convidou vários fadistas a cantarem um poema que ele já tinha, a capella e ao nascer do sol num ponto alto ou num miradouro de Lisboa, para um filme. Telmo foi um deles. Gravou-o perto da sua casa, no Jardim do Monte, quando o lugar estava deserto, às 6h23. “Ao ler o poema, veio-me à ideia o Fado Cravo, era como se ouvisse a música. E cantei-o assim, porque encaixa perfeitamente.”
Ora o poema era de Tiago Torres da Silva e, no processo de gravação do disco, Telmo pediu-lhe se o podia gravar e a resposta foi positiva. “Há umas frases com que me identifico muito. A segunda estrofe, “sou um estranho na cidade/ guiado pela saudade/ da distância de onde vim”, é como se tivesse sido escrita para mim. E ficou no meu repertório, felizmente!”
Até ao núcleo mais puro
Telmo Pires não está fixo em nenhuma casa de fado. “Os meus músicos trabalham todos em casas de fado, mas eu nunca estive efectivo em nenhuma. Mas vou, saio regularmente, para ouvir, para cantar, para conviver. Essa coisa que existe no fado, onde toda a gente se conhece, é muito especial.” Como músico, vive dos concertos e dos direitos de autor. “A Alemanha continua a ser a minha casa. A minha editora é alemã, é a única editora de jazz que faz fado.” Em 2019 cantou na Alemanha, Polónia, Lituânia e começou no fim do 2019 a trabalhar com uma agência alemã e outra de world music em Espanha. Parou tudo, devido à pandemia.
“Eu não tive a escola das casas de fado. A minha escola foi, aos 20 anos, ir para o palco, a fazer teatro e cantar. Cresci fora, sempre a olhar para Portugal e a olhar para o fado, e a ver que se pode cantar a língua portuguesa de uma maneira tão linda. Na Alemanha tive bandas, gravei um disco em português com músicos de jazz, com bateria, piano e contrabaixo, e aqui quis concentrar-me só em guitarra portuguesa, viola e baixo, tirando Uma flor de verde pinho, que tem violoncelo e arranjo de cordas, e Só o meu canto, que tem um toque de violoncelo.”
Com este seu novo disco, diz que quis aproximar-se mais daquilo que considera a pureza do fado: “Não sei se é por essa saudade, essa urgência que sempre senti de ter comigo a pureza do fado. Porque o fado é uma música muito pura, a melodia e a palavra. Nada de coisinhas à volta. E a corrente, no momento, é o contrário do que estou a fazer: todos os fadistas que já estiveram essa experiência estão agora a experimentar piano, baterias, guitarras eléctricas. Não sei se um dia vou fazer isso, ou até um fado techno, mas de momento quis chegar a esse núcleo mais puro do fado, quis gravar um CD que soasse como se estivesse ali, ao vivo.”