A importância do conhecimento científico em tempos de emergência

O conhecimento científico deve ser um investimento regular dos países, como são os cuidados de saúde e a educação.

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Laboratório em São Paulo, no Brasil, onde se está a desenvolver uma vacina para o novo coronavírus Sebastião Moreira/EPA

Quando uma pandemia como a do novo coronavírus se alastra pelo mundo, uma das grandes necessidades é obviamente o desenvolvimento de uma vacina ou de outro tratamento específico. Mas, para isso, é preciso tempo para se criar algo eficaz e seguro. Como se pode então estar preparado para reagir a uma emergência como a que estamos a viver? Os países devem fazer um investimento regular na produção de conhecimento científico, mesmo que isso não pareça ser uma emergência.

Diana Lousa tem pesquisado por grupos científicos que investiguem a proteína da espícula, essencial para os coronavírus consigam penetrar nas nossas células, e tem notado que houve picos nessa investigação. A cientista do Instituto de Tecnologia Química e Biológica da Universidade Nova de Lisboa, em Oeiras, reparou que houve mais trabalhos científicos no tempo das epidemias do SARS-CoV (que ocorreu entre 2002 e 2003) e do MERS-Cov (em 2012). “Julgo que os coronavírus não eram vistos como muito relevantes até ao surto do SARS-CoV”, assinala a investigadora. “Antes disso, infectavam sobretudo animais e havia só alguns que infectavam humanos, mas que causavam coisas muito moderadas.”

Como tal, indica que era difícil arranjar financiamento para estudar estes vírus. “Não eram vistos como ameaças assim tão grandes. Acho que é um pouco errado porque devemos estudá-los não só quando são uma emergência. Quanto mais soubermos de antemão melhor”, considera. Na altura da epidemia do SARS e nos anos que se seguiram surgiu investigação, mas poucos grupos terão continuado. “Acho que isso se deve muito ao facto de o financiamento para a investigação destes vírus ter diminuído quando passou [a epidemia]. O SARS passou, deixou de haver pessoas infectadas e isso levou a uma diminuição do financiamento para a sua investigação.” Acrescenta ainda que a vacina para o SARS-CoV não ficou parada, mas houve menos investigação e doentes que pudessem ser testados.

Também Miguel Castanho, cientista no Instituto de Medicina Molecular (em Lisboa), salienta que, na altura da epidemia do SARS, surgiram várias oportunidades de financiamento, mas que quando a epidemia passou foram diminuindo. “Houve financiamento específico para aquele fim que acabou por desaparecer. Obviamente que continuámos a ter a possibilidade de financiamento por vias mais generalista”, explica.

Algo espantoso em 100 anos

Miguel Castanho e Diana Lousa concordam que esta situação mostra a importância no investimento na ciência fundamental. “Mesmo quando tudo se resolver e até que apareçam algumas terapias, temos de continuar a estudar os coronavírus e os vírus em geral”, alerta a investigadora. “Isso não deve ser só feito quando são uma emergência: devemos antecipar-nos porque a ciência fundamental demora tempo. Só com a ciência fundamental é que estamos mais preparados para desenhar de forma rápida terapias quando as emergências surgem.” Mesmo assim, Diana Lousa faz questão de dizer que a investigação sobre este novo coronavírus não começou do zero, porque já se tinha investigação do SARS-CoV (que é parecido com SARS-CoV-2).   

Para que os países estejam preparados para emergências como estas, precisam de fazer um investimento regular na produção de conhecimento, tal como existe para os cuidados de saúde, a defesa e a educação, destaca Miguel Castanho. “A investigação fundamental tem de ser uma actividade normal em que se disponibilizam recursos quotidiana e frequentemente, porque a forma de se fazer ciência não é por picos, não é como as emergências”, avisa o cientista. “Ninguém faz investigação científica por emergência.” Afinal, a escala de tempo da produção de conhecimento é “muito mais tranquilo” e não consegue responder às intensidades das emergências.

Para exemplificar os contributos da ciência, o investigador lembra que ainda há 100 anos se discutia se o agente causador da gripe pneumónica (dita “gripe espanhola") de 1918-19 era uma bactéria ou um vírus. “O conceito de vírus ainda nem estava bem estabelecido nessa altura. Em 100 anos conseguimos algo espantoso!” Agora, em poucas semanas, a China sequenciou o genoma do SARS-CoV-2 e divulgou-o ao mundo. “Este salto de um para o outro em 100 anos deveu-se à investigação feita regular e continuadamente ao longo desse século.”

Diana Lousa ressalva que a comunidade científica está muito mobilizada para saber mais sobre este vírus. Já foram publicados muitos artigos quer revistas científicas quer em sites de acesso livre. Por sua vez, Miguel Castanho espera que não se repita o mesmo que vimos depois da epidemia do SARS-CoV: “Este é um filme que já vimos: agora no pico da atenção vai haver financiamento para estimular a investigação, mas não sabemos se daqui a uns meses, quando as coisas acalmarem, vamos manter esta atenção e este investimento.”

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