Falar de nós
Se há uma grande lição a retirar desta pandemia é que não há lições. Fazemos o que é possível para restaurar a normalidade, e a normalidade, quando lá chegarmos, será voltar a ser o que fomos.
Se, como pensam ainda alguns responsáveis políticos estrangeiros, vivemos uma tempestade num copo de água, é preciso acrescentar que é dentro dele que nos agarramos a tábuas de salvação. Os jornais multiplicam-se – e com razão – em cenários sucessivos da recente catástrofe humana, porém, como as coisas são o que são, há ainda quem teime em negar todas as evidências. A humanidade não tem cura, disse alguém. As evidências estão aí.
Não é verdade que vamos aprender com esta epidemia, por mais que apelemos a todo o tipo de autognose. Estaremos – é uma fatalidade – sempre desarmados para o futuro, pois “o tempo tudo oculta e tanto pode trazer o bem como o mal”. É precisamente a isso que se chama futuro: o que há-de vir, com sua reserva de surpresa, sobressalto, impreparação. Também torço o nariz ao que por aí se diz desta pandemia, tida como oportunidade para alterarmos o nosso modo de vida. A história é pródiga em fatalidades, desde as naturais às causadas pelo homem. E então: alguma coisa mudou? Não tivemos uma boa oportunidade a seguir à primeira grande guerra? Não tivemos outra, depois da segunda? Não houve oportunidades depois disso, em tempos de conflito nos Balcãs, no Golfo, na Síria? Isso fez-nos mudar no essencial? Não continuamos a ser os lobos uns dos outros? Oportunidades não nos faltam.
Há poucos dias professores havia a equiparem-se de bagagem informática, para leccionarem aulas remotamente, no que isso tenha de verdadeiramente generoso. Mas parámos para pensar quanto tal significa para os milhares de alunos sem acesso a computadores nem internet e para o adensamento da desigualdade? Alguém denunciou o que se passa, neste momento, em faculdades no ensino superior, com professores a enviarem correio electrónico com documentos que, quase de imediato, são apagados por alunos (açambarcadores de conteúdos), no propósito de deixarem outros à margem? Chamamos a isto uma nova oportunidade para repensarmos o que somos? De quantas tragédias necessitaremos para chegar a essa catarse colectiva?
As “redes sociais” inundam-se de pequenas narrativas fílmicas de teor moralista, aliando o cenário actual ao perverso comportamento humano. E isso, para além de criar uma vaga sensação de culpabilidade, serve exactamente para quê? Pedagogia aterradora ou humilhação gratuita? Por outro lado, é penoso o espectáculo de pessoas procurando escapar ao aborrecimento – o aborrecimento pessoal, esse mal do século, tornou-se um vírus incurável. Um mestre do cinema russo disse um dia: “O problema dos jovens é a preocupação com as turbulentas e agressivas reacções para não se sentirem sozinhos e isso é uma coisa triste. O indivíduo deve aprender a ser como uma criança, o que não significa estar sozinho. Significa não se aborrecer consigo mesmo. O que é [esse aborrecimento] muito perigoso, quase uma doença.”
Se há uma grande lição a retirar desta pandemia é que não há lições. Fazemos o que é possível para restaurar a normalidade, e a normalidade, quando lá chegarmos, será voltar a ser o que fomos (e somos, também em casa), seres inevitavelmente cegos e surdos. Também percebemos quanto somos vulneráveis e estamos impreparados, mas até isso não é novo: é exactamente o que dizemos quando a terra treme e tudo desaba, e o que diremos se formos vítimas de uma guerra ou de um holocausto. De resto, o discurso das “oportunidades” e da autognose perante uma tragédia desta dimensão soa a moralismo oportunista. Temos todas as oportunidades em tempo de “paz”, sem necessitar de vítimas e calamidades.
Amanhã, depois da tempestade, regressaremos à escola (da vida) sem ter aprendido a lição, a menos que mudemos os critérios dos valores por que nos regemos, o que é tudo menos verosímil. De um mundo que não erradica a pobreza, a violência e as diferenças sociais não há que esperar muito. Mas podemos fingir que sim. É sempre um consolo. Por agora, apenas dependemos de gente extraordinária (todo o pessoal do sector da saúde, produtores de bens essenciais, distribuidores, físicos, cientistas, trabalhadores do sector da limpeza, responsáveis políticos, etc.), do contributo excepcional de gente generosa (que quase sempre o foi) com sentido do outro, e da sorte. É necessária muita sorte. Mais do que moralismo e beatice.
Entretanto, alunos de todo o país, finjam que estudam (#EstudoEmCasa) para sossegar o ministro da Educação.