Entre a missão da cidade limpa e a impossibilidade de ficar em casa

Vítor Araújo dorme numa casa sem água nem luz, perdeu o sítio onde tomava banho e os restaurantes onde se alimentava. O coronavírus acentuou desigualdades um pouco por todo o país. Mas quem mais precisa de ajuda está, às vezes, na linha da frente para ajudar.

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No dia 24 de Fevereiro, Vítor Araújo pediu ajuda. Era segunda-feira, dia de reunião de câmara no município do Porto, e ele inscreveu-se para falar. A casa onde dormia, sem água nem luz, tinha sido vendida a uma imobiliária e ele temia um despejo forçado a qualquer instante. Encontrar tecto no mercado portuense era missão impossível para os seus rendimentos e câmara e Governo já haviam recusado dar-lhe habitação social. Vítor Araújo não sabia, mas a ajuda que pedia ia ser uma emergência semanas depois, com a propagação de uma pandemia que tudo transforma. E o homem que pedia ajuda e não a teve seria peça importante na manutenção da ordem possível em tempos de caos. Como os profissionais de saúde, farmacêuticos, trabalhadores de supermercados, mercearias, talhos e algumas fábricas, como os gasolineiros, vendedores de jornais, motoristas ou pescadores, também Vítor Araújo, trabalhador de limpeza nas ruas do Porto, não pode parar. E mesmo se pudesse, como faria quarentena numa casa que não é casa?

O relógio marca as seis da manhã e a carrinha já circula. Vítor Araújo assume a condução do veículo equipado com escovas e água, enquanto um colega caminha pelos passeios com uma máquina que “sopra” o lixo para ser recolhido das ruas. Avenida dos Aliados, Ribeira, São Lázaro, Avenida Rodrigues de Freitas - até às 12h40, percorrem todo o centro numa das viaturas da empresa contratada pela Câmara do Porto para fazer a limpeza da cidade. Por estes dias, o burgo quase deserto impressiona e instala, silenciosamente, uma fina angústia. Como se, de repente, a vida real brotasse do cenário pós-apocalíptico da série norte-americana The Walking Dead, compara: “É muito estranho…”

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Nada que o faça parar. Com máscara e luvas de protecção, tenta eliminar o inimigo SARS-CoV-2. Se as ruas estão menos sujas, por haver menos gente a ocupá-las, pô-las num brinco talvez nunca tenha sido tão importante. “Vou limpar melhor, com mais cuidado ainda”, promete. “Para mim é uma missão combater isto.”

Quem o vir na rua, destemido na batalha contra o coronavírus, não imagina como a luta contra a Covid-19 é desigual. O medo, como o vírus, é invisível. Mas para Vítor Araújo, 58 anos, a teia vai muito para além da doença. “Sei que posso apanhar este vírus, mas não tenho um medo exacerbado dele.” Não por a ameaça ser pouca, mas pela existência de temores maiores: “Estou sempre a pensar se, quando chegar a casa, ainda vou ter lá as minhas coisas, se ninguém fez mal ao meu cão…”

Ilha do Cruzinho, Rua do Campo Alegre. Outrora bairro operário com comunidade de raízes profundas e subtis cumplicidades e agora imagem da desolação. As portas foram entaipadas com tijolos, o lixo acumula-se no chão, os moradores foram obrigados a sair. No cimo do corredor, porém, resiste Vítor Araújo. Numa não-casa, sem contrato firmado, na angústia de perder o quase nada que ainda tem.

Chegou ali em 1999. A mulher carregava no ventre o segundo filho. Instalaram-se no bairro onde morou boa parte da vida Germano Silva, jornalista e investigador da história do Porto, e ali viveram anos felizes. E depois outros menos sorridentes. Já divorciado, perdeu o seu trabalho como motorista de pesados de mercadorias. Estávamos em 2008, no início da última crise mundial, e nunca mais conseguiu emprego fixo. Emigrou para a Irlanda do Norte em 2012, onde trabalhou numa fábrica de produção de frangos. Mas a barreira da língua acabaria por fazer o plano fracassar. Regressou a Portugal - e também ao Cruzinho – seis meses depois.

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O senhorio, no entanto, não aceitou assinar um contrato. Já sem subsídio de desemprego e apenas o Rendimento Social de Inserção para sobreviver, foi ficando debaixo daquele tecto. Mesmo sem água nem luz. Almoçava numa cantina na Rua de São Miguel, pedia alimentos na Cruz Vermelha. Emprego conseguiu apenas em part-time, a fazer limpezas no Centro Materno Infantil do Norte: ganhava 350 euros. Era impossível arrendar outro espaço.

Só em Agosto de 2018, com um trabalho na empresa de limpeza da cidade e um salário acima do mínimo nacional, foi ganhando estabilidade. Na ilha do Cruzinho, o anúncio do fim já fora feito pelos proprietários – e a necessidade de encontrar outra solução avolumava-se. Candidatou-se cinco vezes à habitação social da Câmara do Porto e teve cinco “nãos”. Ao Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana fez dois pedidos e nem teve resposta. No mercado? “É impossível encontrar uma casa no Porto hoje. Mesmo os quartos estão a 350 euros.” A pouca esperança deposita-a agora nas casas da Sé a preços acessíveis que serão sorteadas pela autarquia - mas até isso o surto de coronavírus adiou.  

A vida do avesso

Quando há menos de duas semanas o país acordou para o vírus que abalava a China desde Dezembro, Vítor Araújo perdeu alicerces. O ginásio onde se inscreveu para manter alguma saúde, mas sobretudo para garantir um lugar para tomar banho, fechou. Vários balneários da cidade seguiram o mesmo caminho. Decretado o estado de emergência, com um combate ao vírus feito atrás das fachadas, onde quem pode deve permanecer, também os restaurantes deixariam de servir nas suas mesas.

Para Vítor Araújo, comer fora não é luxo: é necessidade. Sem electricidade em casa, tem apenas uma boca num fogão a gás para fazer o mínimo: aquecer água para um chá, leite para juntar ao café. O frigorifico é apenas um armário. Não tem luz, não tem televisão ou aquecimento, não pode carregar o telemóvel. Água para lavar louça não existe. Água para lavar mãos - acto de sobrevivência nos dias que correm – também não. Por isso, e pela solidão entre quatro paredes, permanecer ali é uma impossibilidade. “Não posso fazer a minha vida em casa. Em pouco tempo morria, não do vírus, mas de depressão.”

Enquanto percorre a cidade sem rebuliço e continua a ver dezenas de sem-abrigo na rua, é impossível conter o pensamento: “De um dia para o outro, posso ser eu ali.” Nas rotinas do trabalho, materiais de protecção à parte, não há alterações significativas. Mas o pedido de mudança aos cidadãos já foi feito por empresas de gestão de resíduos urbanos. Quem tem gente da família infectada ou está sob suspeita, deve agora colocar os seus resíduos no lixo de resistentes e descartáveis - e não encher completamente os sacos, que na verdade devem ser dois, para maior protecção. Resíduos como luvas, máscaras ou lenços de papel, mesmo entre pessoas saudáveis, devem sempre ser colocados no contentor de lixo comum.

Gestos que salvam

Enquanto o primeiro-ministro falava ao país sobre as regras do estado de emergência, Vítor Araújo torcia para não ver o seu ofício cair numa lista de profissões a suspender temporariamente. “Não podemos desistir todos, se não isto pára”, comenta. Talvez o mundo como o conhecemos não volte mais, mas a equação final não seja apenas de perdas. Ainda há dias, quando uma trabalhadora de um lar de idosos com quem se cruzou nas ruas lhe perguntou se podia vender-lhe uma máscara igual à que usava, Vítor Araújo meteu a mão no bolso e ofereceu-lhe o equipamento. Porque, desta vez, diz, “estamos todos no mesmo barco”, numa espécie de prova da relatividade do poder e das hierarquias. “Acho que podemos aprender alguma coisa com isto…”, comenta. A ex-mulher, auxiliar de acção médica no Hospital de Santo António, contou-lhe também da dificuldade de ter gente suficiente para fazer a limpeza da unidade de saúde e garantir uma rotatividade de segurança. E Vítor Araújo já definiu o próximo passo: “Se for preciso, vou para lá trabalhar.”

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