Só os pássaros são livres
Eu rezava que chegasse a hora da visita. Sentava-me num banco comprido a ver a porta a abrir e a fechar. Até que ela entrava.
A dor no peito começou a ser insuportável. Sentei-me na cama. Chamei a minha mãe. Como se o tempo andasse a uma velocidade estonteante, comecei a ver batas brancas à minha volta. Deitado numa maca, alguém me colocava o estetoscópio frio no peito. A ordem de internamento era inevitável. Eu, que sempre tive medo de ambulâncias, de agulhas, de sangue, resumindo, medo da dor e do sofrimento, estava agora ali deitado, separado por cortinas verde-claras a ouvir gemidos e palavras de conforto. Estava ali e ali fiquei. Sem saber o que tinha. Só sentia a dor no peito. E angústia da cabeça aos pés.
O hospital era bem luminoso. Tinha um nome curioso. Hospital de Celas. Presos em enfermarias, eu era o benjamim. Tinha 17 anos. Estava na enfermaria maior. Nove camas. Oito homens e um candidato a homem. Pela manhã, vinham os médicos e as enfermeiras. Tiravam a febre. Auscultavam as costas e o peito. Davam comprimidos e injecções. Depois, cada um de nós, à sua maneira, rezava pelas melhoras. Eu rezava que chegasse a hora da visita. Sentava-me num banco comprido a ver a porta a abrir e a fechar. Até que ela entrava. Transpirada. Carregada de sacos. Sempre a sorrir. A minha mãe não faltou um dia. Nunca deixei de ter beijos. Do meu pai não me lembro. O meu avô não tinha coragem de entrar no hospital.
Nas viagens diárias de comboio, a minha mãe tinha força para me trazer água, bolachas, sandes e um precioso batido de morango. Todos os dias bebia aquele batido dos céus. Dizia ela que eu necessitava de comer bem. Não percebia porquê. Mas do que eu gostava mais era dos livros. De banda desenhada, de política, de ecologia. De quase tudo. E do Jorge Amado. Ela sabia que era o meu preferido. Levava uns, trazia outros. O tempo era imenso.
Um dia pela manhã, no meio da enfermaria, sentaram-me com os meus braços sobre as costas de uma cadeira. Estava em tronco nu. Os oito homens saíram de cabeça baixa. Um enfermeiro trouxe um carrinho com material hospitalar. Tremi. E então ouvi uma frase que nunca mais esqueci — “Espetas tu ou espeto eu?” Senti os dedos a tactearem as minhas costelas. Uma agulha enorme. Deitaram-me na cama. De lado. Ligado a uma máquina. Perguntaram se eu estava bem. Pedi água.
Estava em Celas há quase um mês. Sentia-me melhor. Continuava a ter o sorriso da minha mãe todos os dias. O batido de morango e os livros. Depois da visita, um enfermeiro veio ter comigo. Levou-me para uma sala. Lá dentro existia uma máquina enorme. Avisos de radiação. Vesti uma bata e deitei-me num túnel. Os médicos, dentro de uma cabine, falavam para mim através de um microfone. “Respire fundo, não respire”, ecoavam as colunas de som. Mandaram-me vestir o pijama. Um médico alto e com o cabelo grisalho veio ter comigo. Colocou a sua mão no meu ombro. Com os olhos a brilhar, disse: “Rapaz, já podes ir para casa.”
O carro do meu avô estava à porta. Saí com a minha mãe. Estava sol. Ouvi o barulho da cidade. Do banco de trás, olhei pelo vidro da janela e vi o hospital a desaparecer. Logo ali senti saudades. Estávamos em 1983.
Tudo agora se tornou tão presente. Fechado em casa, existe o tempo necessário para dar asas ao pensamento. Recordo com falta de nitidez os oito homens. Os médicos. Os enfermeiros. O hemopneumotórax deixou uma cicatriz no meu pulmão direito. Cresci a lembrar-me todos os dias dela. E como foi importante para mim. Dei outro valor à luta. A luta pela vida. E se tinha todos os dias os beijos da minha mãe, também tinha a fraternidade daquela enfermaria. E tinha a igualdade, impressa em lei por homens de bem — o Serviço Nacional de Saúde. Pessoal auxiliar, enfermeiros, médicos. Todos os dias lhes batia palmas apesar da dor aguda da agulha gigante. Com 17 anos, o Hospital de Celas foi uma escola para mim. Os valores da humanidade superavam as dores.
Metade do mundo está a lutar. Outra metade está à espera de começar a lutar. Não sei como vai ser. Ninguém sabe. Mas um fim terá. E quando o vírus chegar ao campo de refugiados de Moria? E quando chegar às favelas do Brasil? E quando chegar aos bairros de lata de Joanesburgo? E quando chegar aos excluídos de Detroit? E quando chegar aos mártires da Síria? E quando chegar aos famintos do Sudão? E quando chegar aos sem-abrigo de Lisboa? E quando chegar a todos os pobres deste mundo? Quando chegar, chegou. Dirão os “Trumps” deste mundo. Uma nova máquina de ganhar dinheiro está sempre pronta a ser montada. Os “Trumps” são o vírus mais antigo da história. Nada nem ninguém os destrói.
No local onde escrevo, tenho uma janela grande. Vê-se a rua sem ninguém. Só os pássaros continuam a ser livres. Quando saí do Hospital de Celas, vinha fortalecido. Acreditava no mundo. Que era possível. Bastava para isso pegar no pau da bandeira e pôr a política e a economia ao serviço das pessoas. Parecia fácil. Parecia.
E quando tudo acabar. A vacina chegará. Para uns, não para todos. Virão milhões para a rua celebrar. Os “Trumps” farão discursos e darão longos apertos de mão. E no dia seguinte um exército continuará a apertar parafusos. Outros a dormir no papelão. Outros a fugir num barco com fundo frágil. Outros a pegar em bazucas. Outros a não terem que comer. Que se desiludam os homens de esperança. O mundo continuará igual. Resumindo, se calhar só descobriremos as “maravilhas” do teletrabalho.
O Hospital de Celas ensinou-me muita coisa. Mas devia ter-me ensinado que só os pássaros são livres.