Comerciante que nos explorar neste momento é comerciante acabado em menos de um farelo

Há mais heróis no meio disto tudo, aqueles que ajudam a manter abertos supermercados, mercearias, farmácias e tantos outros negócios para que nós possamos sobreviver. Mas para os que querem abusar da nossa fragilidade actual não há perdão, diz-vos um filho e irmão de comerciantes.

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LUSA/MÁRIO CRUZ

Eu nasci numa venda, uma mercearia que era também uma taberna. Ao ritmo do trabalho dos meus pais, e dos seus proveitos, cresci conforme a terra ia crescendo, com o meu pai em cada momento desse crescimento a vender o que era preciso. Farinhas e farelos? Cá está. Petróleo, pentes, copos de medronho? Siga. Feijão, arroz, bacalhau? Faça favor. Tijolos, vigas, sacas de cimento, mosaicos? Também temos. Quartos para turistas, simpatia a rodos, arte de bem receber? Nunca falta.

Conforme a minha terra-mar (a Zambujeira do Mar, a tal) ganhava celebridade e nos dava no Verão o que não se tinha no ano todo, eu aprendia tudo do comércio sem sequer precisar de pensar muito no assunto. O meu pai era um génio e a minha mãe sabia-a toda. De um buraquinho fizeram o seu pequeno império. Aprendi tudo com eles, da arte de ouvir e falar, do negociar e do lucro (mais ou menos justo), de arranjar a alguém o que a pessoa precisa e ficar contente tanto por isso como, sim, por fazer dinheiro.

Mas acima de tudo aprendi com os meus pais uma certa arte milenar, que lhes corria no sangue (na minha mãe ainda corre e bem) de interligar a comunicação e o comércio, no seu sentido mais lato (não em vão, os romanos tinham um deus encarregado destas duas artes, o divino Mercúrio). Nós éramos daquelas famílias que dormíamos por cima do negócio, como um serviço público com interesses privados, mas também comunitários - particularmente fora da época alta (se há coisa que gosto é ouvir as pessoas da minha terra falarem do meu pai, que morreu há uns anos, como um homem de bem, um comerciante de bem, as pessoas dizem que isso era antigamente, é falso, eu conheço alguns, o meu irmão é hoje em dia comerciante por herança merecida e é igual a eles).

Sendo certo que o instinto natural dos meus pais era o lucro, já que era para isso que trabalhavam, eu cresci a ver os meus pais ajudarem muita gente. E nunca, nunca!, que me lembre, vi os meus pais explorarem a miséria alheia, a vender por preços impossíveis produtos a quem por eles menos podia pagar, a recusar a alguém comida ou bebida mesmo que a pessoa não tivesse dinheiro, mesmo a desconhecidos. Com os seus limites, claro, mas sem abusar dos clientes, que isso não fazia parte da cultura dos meus pais no negócio.

É neles que penso agora que vejo comerciantes que arriscam a saúde mantendo as portas abertas. E não me venham dizer que é só pelo lucro. Mostrei (naturalmente) quase todo este texto ao meu irmão antes de o publicar e, ao bom estilo alentejano, deu-me uma bênção silenciosa e uma crítica: “O meu sentimento vai nessa linha de responder à necessidade e de fazer negócio mas com respeito e consideração pelos clientes. Neste momento, o meu pensamento é ir mantendo a funcionar e aberto porque o supermercado é uma espécie de serviço público, toda a gente precisa de comprar alimentos e outros produtos básicos e essenciais. Esperemos que corra tudo bem, se os supermercados fecham por falta de produtos ou por precaução é um caos”. Sim, eu tenho um orgulho do meu irmão – e deixem-me dizer que é muito difícil tirar a minha mãe (84 anos) do sítio onde ela passa os dias como guardiã e patroa.

Mas se esta é a minha família, já vemos por aí casos de comerciantes a abusarem da sorte. A abusarem de pessoas que precisam de álcool, de máscaras, de desinfectantes, etc., etc.. Nem me ponho com exemplos, cada um que dê os que já viu (faça favor, também pode enviar-nos): do álcool a preço de ouro às máscaras que parecem valer milhões, às marcas (seja elas quais forem) que estão a aproveitar para promover os produtos do momento, sejam eles sabonetes ou papel higiénico. E não estamos a falar de produtos que acabaram de ser produzidos com novos custos porque tudo mudou, não é uma simples lei do mercado, é uma lei do mercado brutal e selvagem.

Serão os meus pais figuras de outros tempos, lá longe, da cultura da aldeia outrora perdida num fim do mundo? Talvez. Mas é deles que eu hoje, que ando mais pela comunicação que pelo comércio, me lembro. Imagino o meu pai ou a minha mãe, imagino até hoje o meu irmão, como pessoas incapazes de explorar as necessidades de tantos a preços assassinos. 

Aos que andam a estragar esta imagem, e que pretendem sobreviver a isto, eu lembro: não se engana o cliente assim, porque depois ele não volta, a gente quer é que ele saia da nossa casa contente e volte e torne a voltar, é ele voltar e voltar e voltar que nos alimenta e até nos faz a todos amigos.

Os meus pais tinham muitos amigos, todos clientes; tinham muitos clientes, todos amigos. Das suas muitas lições, uma simples: comerciante que explora o cliente ganha muito e depressa, mas perdendo a confiança, perde tudo. E digo eu, como diria o homem que sabia disto tudo, o meu pai, Zé do Carvalhal: fica acabado em menos de um farelo.

Sim, eu sei e repito, neste momento há muitos profissionais do comércio que são heróis, que se sentem a fazer um serviço público, tão essencial quanto a saúde ou a segurança.

Mas deixo o elogio maior aos comerciantes de bem e de coragem para mais tarde, que há outras urgências. Para já, deixem-me dirigir ao comerciante que anda a tentar o lucro abusivo nesta hora da guerra. Sem sequer pensar em detalhes legais (da especulação e afins), que nem preciso, com toda a sabedoria que me corre no sangue, digo-te, ave de rapina: estás acabado. Podes até sobreviver ao vírus e ao seu comércio, mas não vais sobreviver aos clientes que te vão abandonar. Achas que vais enriquecer? Enganas-te. Tens os dias contados.

Esta é a hora de mostrarmos quem somos, e se é assim que tu te mostras, acabaste de declarar falência, humana agora, comercial futura.

Haverá muitas falências? Muito desemprego? Todos perderemos? Sim. Haverá feridos e mortos? Sim, já o sabemos. Mas, mantendo a nossa humanidade, haveremos de conseguir cuidar-nos e ajudar-nos uns aos outros. Já para quem optar por estes esquemas de abuso, só restará depois apelar à misericórdia de Mercúrio, até porque, por sinal, na sua divina bondade, ele também é patrono dos ladrões: cada um que escolha o seu lado.

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Estátua do deus Mercúrio do escultor Leopoldo de Almeida. Está à entrada da UACS - União de Associações do Comércio e Serviços de Lisboa e Vale do Tejo. CML
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