Já começam a faltar voluntários para apoiar os sem-abrigo
Muitos voluntários estão a abandonar associações e equipas de apoio aos sem-abrigo relatam dificuldades no terreno. Governo articula novas respostas com autarquias e aposta na criação de centros de acolhimento. Protecção civil pode ser chamada a ajudar.
O relato de Andreia Raposo chega como um desabafo. Na noite de segunda-feira, ela e o namorado foram pela primeira vez voluntários da Legião da Boa Vontade para dar apoio à população sem-abrigo. O colega de casa, “voluntário há muitos anos”, comentou a falta de ajuda e eles ofereceram-se para dar uma mão. As equipas costumam ter seis elementos, mas naquela noite estavam apenas quatro. Com as refeições preparadas num kit, seriam os suficientes. Equipados com luvas e máscaras, receberam instruções para “manter uma distância de segurança” devido à pandemia do novo coronavírus.
Na primeira paragem, “eram inúmeras as pessoas que lá estavam”. Nenhuma associação tinha aparecido antes. A comida esgotou rapidamente. Voltaram à associação, prepararam mais refeições, e seguiram para o próximo local. O número de pessoas “foi crescendo e crescendo” e toda a comida esgotou. “Não havia mais, nem mais o que preparar... E mais uma vez soubemos que mais ninguém tinha aparecido. Não podíamos fazer mais nada”, relata Andreia Raposo, num email que fez chegar ao PÚBLICO. No caminho de regresso, debatia-se com o que tinha visto e deixado para trás. Dezenas de pessoas ficaram por servir só ali. “E a outros locais já nem conseguimos ir... Não consegui ajudar a matar a fome a todos os que ali estavam e esse é um sentimento que não irei esquecer.”
Em tempos de pandemia, as recomendações do Governo e da Direcção-Geral de Saúde repetem-se até à exaustão. Fiquem em casa, lavem as mãos com frequência, evitem contactos, vigiem o estado de saúde. Entre quatro paredes, isolados mas com um desígnio comum, milhares de portugueses vão cumprindo o seu papel. Mas nas ruas, sem paredes nem tecto, pelo menos 3400 pessoas não têm forma de combater o vírus que está a virar o mundo ao contrário. Como se faz uma quarentena sem casa? Como se mantém as mãos impecavelmente limpas? Como se mede a febre? A quem se pede dinheiro para comer em cidade com ruas quase desertas?
A palavra “crise” assenta como uma luva no cenário actual. Henrique Joaquim, gestor da Estratégia Nacional de Integração dos Sem-abrigo, não procura eufemismos e foca a atenção no mais básico: “É preciso garantir que esta população tem alimentos e cuidados básicos.” E, “para já, apesar de alguma dificuldade, as estratégias locais estão a conseguir fazê-lo”, garante. O momento é de adaptação constante, mas o plano “já está em execução”. Para quem não tem tecto, vão ser criados “espaços de acolhimento” em vários pontos do país. “Cada núcleo local deve ficar responsável por encontrar a melhor resposta”, afirma Henrique Joaquim. O reforço na confecção de alimentos e a requisição de ajuda à Protecção Civil também fazem parte do plano — e podem ser activados a qualquer momento.
O pavilhão do Casal Vistoso, em Lisboa, é o primeiro centro a abrir portas, na noite desta terça-feira, para acolher, ainda que temporariamente e com capacidade limitada, quem não tem apoio ou caia agora na rua. Entre o rol de medidas do plano de contingência, que está a ser coordenado pelo Núcleo de Planeamento e Intervenção Sem-Abrigo do município, está ainda o reforço de limpeza dos centros de acolhimento, a criação de espaços de isolamento para casos suspeitos e a abertura de dois novos espaços “com todas as condições” para quarentena.
De resto, tudo se mantém com aparente normalidade: as equipas de rua vão continuar a trabalhar, respeitando as indicações que forem sendo dadas pelas autoridades de saúde. Os Núcleos de Apoio Local de Arroios e de São Vicente vão continuar a servir refeições, e as equipas de rua também, “com as devidas precauções”. Os cuidados redobrados, que têm sido pedidos pelas autoridades de saúde, têm afastado voluntários e mesmo técnicos que se vêem empurrados para o isolamento, deixando as associações desfalcadas.
Até agora, a Câmara do Porto “não recebeu qualquer pedido” para criar centros de acolhimento. “Talvez pelo facto de ser o único município do país que gere um centro de acolhimento temporário” e por esta resposta, juntando-se com outras da Áreas Metropolitana do Porto, seja “suficiente”, admite o gabinete de comunicação da autarquia.
O executivo de Rui Moreira concentrou a resposta dos restaurantes solidários em apenas um espaço, o Centro de Acolhimento Temporário Joaquim Urbano, reforçando medidas de segurança e pondera, numa fase posterior, que “o serviço de fornecimento de refeições da rede de restaurantes adopte um modelo de take away”. Nesse mesmo espaço, se tal for necessário, poderá ser aumentado o número de camas. E se houver necessidade de isolar alguém, existe já uma reserva de dez camas, numa parceria entre a Misericórdia do Porto e a autarquia.
Menos voluntários…
As quatro equipas de voluntários da Comunidade Vida e Paz que saem à rua todas as noites para distribuir refeições passaram a ter metade dos elementos. “Estamos a criar um banco de voluntários que se têm disponibilizado para conseguirmos assegurar este apoio”, diz Renata Alves, presidente da instituição. Mas começa a ser difícil garanti-lo. “O número de pessoas que está a depender de nós neste momento é maior. Começamos a não ter refeições para a procura”, nota a responsável. “Ontem [segunda-feira], na Gare do Oriente, percebeu-se claramente que havia um número maior de pessoas”.
Face à falta de pessoal e para garantir que as refeições chegam a quem precisa, as associações juntaram-se para coordenar esforços nessa missão: o Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA) e a Noor'Fátima ficam responsáveis pela confecção de 400 refeições e a Comunidade Vida e Paz distribui-as por Lisboa.
Em Coimbra, a resposta aos sem-abrigo é coordenada pela autarquia e, “para já, não há falta de pessoal para prestar o apoio”, garante o vereador Jorge Alves. Alguns problemas, no entanto, já ganham forma: “As instituições começam a ter alguma dificuldade em garantir os giros de apoio”, diz, acrescentando que haverá reforço dessas equipas com técnicos da câmara.
A Associação das Cozinhas Económicas Rainha Santa Isabel serve cerca de 570 refeições por dia, dando resposta a pessoas sem-abrigo e outras com carência económica. Para já, embora com alterações, mantém o serviço. A Cozinha Económica começou por restringir a entrada no refeitório que tem na baixa da cidade a 21 pessoas (uma por mesa), mas desde o início desta semana que só serve refeições take away, conta a directora técnica Ana Maria Cristóvão. “Foi a forma que encontrámos de salvaguardar as pessoas.”
Em Aveiro, a Florinhas do Vouga, instituição com várias respostas para os sem-abrigo, continua a assegurar almoço e jantar para os cerca de 50 sem-abrigo identificados na cidade. O refeitório funciona agora em regime de take away e a distribuição de bebidas quentes e reforço alimentar durante a noite teve de ser cancelada. O mesmo caminho terá de ser seguido com o balneário, admite. “Foi pedido à câmara para disponibilizar um balneário público, mas estamos sem resposta”, aponta Sandra Marques. Ainda que mantenha alguns técnicos na rua, a tentar identificar necessidades, a instituição teme “por todos aqueles que estão sem tecto”, alguns dos quais “sem telefone sequer para pedir ajuda”.
A bolsa de voluntários do Centro de Apoio aos Sem-Abrigo (CASA) do Porto tem 150 pessoas activas. Mas em poucos dias, com o surto de coronavírus a ganhar dimensão, mais de metade desvinculou-se, conta Natália Coutinho. Nas ruas, as equipas deixaram de montar as bancadas para servir sopas e comida quente aos sem-abrigo, diminuindo assim a possibilidade de contacto e contágio, e passaram a entregar apenas kits. Ainda conseguem dar resposta, mas nos últimos dias a procura cresceu porque alguma oferta desapareceu. E todos temem um amanhã pior.
Todas as manhãs, Ana Pereira faz uma ronda telefónica pelas equipas dos Serviços de Assistência Organizações de Maria (SAOM) e readapta a resposta. “As coisas mudam a toda a hora” e a gestão é cada vez mais complexa. Esta terça-feira, a empresa que faz a entrega de pão comunicou o encerramento da actividade, foi preciso procurar outra solução. A doação de produtos “reduziu drasticamente”, as recolhas foram canceladas.
“Estou muito preocupada. As respostas já não eram suficientes, agora são claramente insuficientes. É uma população com enorme carência, o pouco que tinha faz falta”, diz. A Câmara do Porto já garantiu à SAOM, que serve cerca de 300 refeições por dia, que não faltará alimento, conta Ana Pereira. Mas a angústia não é fácil de conter.
Até agora, não chegou à Câmara do Porto nenhuma comunicação de desistências de instituições públicas, privadas ou solidárias da sua rede social que procura dar resposta aos sem-abrigo da cidade, 560 pessoas segundo dados da autarquia. Mas quem anda no terreno sente falta de gente que costumava encontrar, testemunha Natália Coutinho. “A procura no restaurante solidário subiu, as associações que suspenderam actividade estão a encaminhar as pessoas para lá.” A Saber Compreender, por exemplo, decidiu fazê-lo já no final da semana passada.
“Engolir o medo”
A equipa da SAOM incluiu no seu plano de contingência, que a Câmara do Porto pediu a todas as associações que fizessem, a rotatividade e vai “poupando” o pouco material de protecção, como luvas ou máscaras, que tem disponível. A autarquia já se disponibilizou para entregar mais material, mas entre quem anda na rua o receio é crescente. “Do ponto de vista psicológico isto é muito pesado”, admite Ana Pereira. “Mas os nossos profissionais continuam na rua, com imensa coragem, a engolir o medo.”
Henrique Joaquim apela à solidariedade de todos e à resistência. Adoptando as medidas de segurança que cada associação delineou nos seus planos de contingência, “é possível, com algumas adaptações, continuar a fazer o trabalho”, defende, recusando a necessidade de uso de máscaras para apoiar os sem-abrigo sem sintomas de doença. “Todos somos poucos neste momento. Mais do que nunca é preciso ajudar e os voluntários são essenciais.”
E num estado de emergência?
O coordenador da Estratégia Nacional não tem uma resposta contundente para aquilo que acontecerá caso o estado de emergência seja decretado e a quarentena se torne obrigatória. Poderão as associações continuar a fazer o seu trabalho? “Quero acreditar que não vai haver impedimentos e que ninguém ficará sem apoio”, responde.
Na CASA, no Porto, a esperança é a mesma. E desistir é verbo sem conjugação possível, nem que para isso se decrete desobediência. “Temos de ser o supermercado de quem não pode ir ao supermercado. É preciso bom senso. Se houver uma quarentena obrigatória é minha convicção de que vamos ter de a furar.”
Renata Alves diz que será necessário perceber as orientações do Governo e das autoridades de saúde, mas que a Comunidade Vida e Paz tudo fará para manter as rondas. Para que não se repita o que Andreia Raposo viu nas ruas da capital. “Hoje vi na primeira pessoa do que o medo é capaz, suplantou a entreajuda... O isolamento social é necessário, mas do mesmo modo que muitos empregos não podem parar, ajudar quem mais precisa também não pode parar.” Com Camilo Soldado e Maria José Santana