Vendas de ibuprofeno caem a pique. O que sabe sobre a relação do medicamento com a covid-19?
Agência Europeia de Medicamentos e Infarmed garantem que “não existe actualmente evidência científica que permita estabelecer uma relação entre o ibuprofeno e o agravamento da covid-19”.
As vendas de ibuprofeno em Portugal diminuíram quase 30% no espaço de uma semana, divulgou esta quarta-feira a consultora Health Market Research. A empresa de estudos de mercado para a saúde revelou, através da rede social Linkedin, que as farmácias portuguesas venderam, na passada terça-feira (17 de Março), cerca de 40 mil unidades do anti-inflamatório — o que corresponde a um decréscimo de 28,8% face a 10 de Março, quando se venderam quase 60 mil unidades.
A consultora atribui o decréscimo nas vendas ao “impacto mediático” do desaconselhamento do medicamento na sequência da pandemia de covid-19. Ao mesmo tempo, o paracetamol apresentou um “padrão de compra claramente alterado” no sentido ascendente, com as vendas de antipiréticos (como, por exemplo, o Ben-U-Ron) a aumentarem cerca de 103,7% numa semana.
Ao longo dos últimos dias, têm circulado nos meios de comunicação e especialmente nas redes sociais informações contraditórias que levantam questões sobre a relação entre a administração de medicamentos anti-inflamatórios não esteróides (AINE), como o ibuprofeno, e o agravamento da doença covid-19, causada pelo novo coronavírus.
A falta de consenso potenciou a disseminação online de mensagens contraditórias e informações incomprovadas pela comunidade científica. E porque “quem conta um conto, acrescenta um ponto”, o volume de rumores e informações falsas em circulação, assim como as teorias da conspiração, aumentou diariamente.
Ao que tudo indica, a preocupação começou em França, há uns dias, quando Jean-Louis Montastruc, médico do Hospital Universitário de Toulouse, afirmou que “os medicamentos anti-inflamatórios aumentam o risco de complicações em caso de febre ou infecção”, cita a rádio RTL. O ministro da Saúde francês, Olivier Véran, recorreu, por sua vez, ao Twitter para alertar que os medicamentos anti-inflamatórios “podem ser um factor agravante da infecção” — uma publicação que foi partilhada mais de 43 mil vezes —, embora tenha destacado que é essencial as pessoas consultarem os médicos antes de interromperem qualquer tratamento.
Somam-se a estas outras publicações que têm sido partilhadas milhares de vezes nas redes sociais (chegando a atingir as 94 mil partilhas) e que garantem que o ibuprofeno “pode causar casos graves da doença, até mesmo em adultos jovens e de meia-idade sem doenças preexistentes”, cita a BBC.
O que dizem as autoridades?
A Direcção-Geral da Saúde (DGS) tem informado que nem o Brufen nem outros medicamentos anti-inflamatórios potenciam a acção do novo coronavírus.
Em comunicado divulgado esta quarta-feira, a DGS cita a Organização Mundial da Saúde (OMS), que, “em nenhum momento, referiu que o ibuprofeno” e outros anti-inflamatórios “está contra-indicado em doentes com covid-19”, depois de a OMS não ter confirmado a relação entre uma enzima cuja produção é aumentada pelo ibuprofeno e o novo coronavírus, avançada num estudo publicado pela revista médica The Lancet.
Também a autoridade portuguesa do medicamento (Infarmed) tem vindo a reafirmar que não há provas de que o ibuprofeno agrave a infecção por covid-19 e, esta quarta-feira, foi a vez de a Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) voltar a destacar esta falta de evidência clínica num comunicado divulgado no seu site.
A EMA sublinha que os pacientes e profissionais de saúde podem continuar a utilizar medicamentos AINE, como o ibuprofeno, “de acordo com as indicações terapêuticas aprovadas”. Mas salienta que as actuais recomendações apontam para um uso destes medicamentos na menor dose possível (sem comprometer a sua eficácia) e durante o mais curto período de tempo possível.
A entidade refere ainda que os pacientes que permanecem com dúvidas devem esclarecê-las junto dos seus médicos e farmacêuticos. Mas deixa uma nota: “Não há actualmente nenhum motivo para que os pacientes que tomam ibuprofeno interrompam o seu tratamento, com base no acima descrito”, diz, referindo-se especialmente aos casos de pessoas com doenças crónicas que tomam habitualmente este tipo de medicamentos.
Segundo a EMA, a maioria dos medicamentos que contêm ibuprofeno estão autorizados a nível nacional pela maior parte dos Estados-membros da União Europeia como analgésicos e, nalguns países, como antipiréticos — ou seja, medicamentos para a febre —, estando “amplamente disponíveis” para venda livre ou sujeita a receita médica.
O ibuprofeno oral, acrescenta a EMA, é utilizado em adultos, crianças e bebés a partir dos três meses (variando a forma como é administrado) para um curto tratamento da febre e/ou dores de cabeça, gripais, de dentes e dores menstruais, sendo também prescrito para o tratamento da artrite e doenças reumáticas. Já o cetoprofeno é “um medicamento semelhante, principalmente prescrito pelos médicos em casos de dor e doenças inflamatórias”, sendo possível adquiri-lo em alguns Estados-membros da UE sem prescrição médica.
A Agência Europeia de Medicamentos refere ainda que, em Maio de 2019, o Comité de Avaliação do Risco em Farmacovigilância (PRAC) iniciou uma revisão sobre os anti-inflamatórios não esteróides, como o ibuprofeno e o cetoprofeno, após a Agência Francesa de Medicamentos e Produtos de Saúde (ANSM) ter realizado um estudo que sugeria que algumas infecções bacterianas ou a infecção por varicela poderiam ser agravadas por estes anti-inflamatórios — uma análise actualmente em curso para avaliar se é necessário tomar alguma medida adicional. No entanto, a EMA destaca que os folhetos informativos destes produtos advertem já para a possibilidade de estes anti-inflamatórios poderem “encobrir” os sintomas de um agravamento de uma determinada infecção.
À semelhança do acima descrito, a EMA sublinha a necessidade de se realizarem estudos epidemiológicos “de forma atempada” para analisar devidamente os efeitos dos medicamentos anti-inflamatórios não esteróides no prognóstico da doença covid-19.
Já o Infarmed refere, por sua vez, que o comunicado da ENA vem reiterar a “ausência de evidência entre o agravamento da infecção por covid-19 e o ibuprofeno” e sublinha, numa nota enviada às redacções, “que os doentes devem respeitar as indicações dos seus médicos e farmacêuticos no uso responsável dos medicamentos prescritos”.
Paracetamol como primeira opção
A Agência Europeia de Medicamentos refere, porém, que, “ao iniciar o tratamento para a febre ou dores causadas pela covid-19, os pacientes e profissionais de saúde devem ter em consideração todas as opções de tratamento disponíveis, incluindo o paracetamol e os medicamentos anti-inflamatórios não esteróides”. “Cada medicamento tem os seus próprios benefícios e riscos, contemplados nas informações sobre o produto [folheto informativo] e que devem ser tidos em consideração juntamente com as orientações nacionais de tratamento [dos Estados-membros] da União Europeia [UE], a maior parte das quais indica o paracetamol como a primeira opção de tratamento para a febre ou dor”, prossegue a nota.
Vários profissionais de saúde, ouvidos pela BBC, salientam que as pessoas que se encontram a tomar ibuprofeno para tratar outras doenças não devem, no entanto, interromper o tratamento sem consultar primeiro um médico — embora refiram que o uso de ibuprofeno e outros medicamentos anti-inflamatórios não esteróides não é recomendável em todos os casos e pode causar efeitos secundários, nomeadamente em pessoas com asma e problemas cardíacos ou de circulação.
Uma vez que “não há actualmente provas fortes de que o ibuprofeno pode agravar a covid-19, até que haja mais informação, tome paracetamol para tratar os sintomas de coronavírus, a menos que o seu médico lhe tenha dito que o paracetamol não é recomendável para si”, alertou recentemente o Sistema Nacional de Saúde britânico.
Charlotte Warren-Gash, médica da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, nota à BBC que, especialmente no caso de doentes vulneráveis, “parece sensato escolher o paracetamol como primeira opção” — à semelhança do Infarmed, que recomenda “que o medicamento preferencial para o tratamento da febre em automedicação seja o paracetamol”.
Informação incomprovada vs informação falsa
Certo é que não existe ainda qualquer estudo sobre o efeito do ibuprofeno nos pacientes com covid-19. No entanto, refere a BBC, existem estudos referentes a outras infecções respiratórias que sugerem que o ibuprofeno está associado a um agravamento de certas doenças, embora não se tenha a certeza se é o próprio ibuprofeno que causa tais efeitos, explica à BBC Paul Little, professor na Universidade de Southampton.
Especialistas, citados pela BBC, defendem que as propriedades anti-inflamatórias do ibuprofeno podem “atenuar” a resposta imunitária do organismo. Parastou Donyai, professora na Universidade de Reading, garante que “existem muitos estudos que sugerem que o uso de ibuprofeno durante uma infecção respiratória pode resultar num agravamento da doença ou outras complicações”. Mas, acrescenta: “Não vi nenhuma prova científica que mostre claramente que uma pessoa de 25 anos totalmente saudável que tome ibuprofeno para tratar sintomas de covid-19 se esteja a colocar em maior risco de complicações”.
Isto porque, conforme revela a estação britânica, têm vindo a circular online e nas redes sociais, como o WhatsApp, histórias que dão conta de supostos jovens saudáveis que ficaram infectados pelo novo coronavírus e foram internados nos cuidados intensivos porque tinham tomado anti-inflamatórios. Outra alegação falsa é de que a Universidade de Viena teria emitido um alerta para que as pessoas com sintomas de covid-19 não tomem ibuprofeno porque este “aumentaria a velocidade de reprodução do novo coronavírus no corpo”, sendo esta, alegavam, “a razão pela qual as pessoas em Itália atingiram esta fase e rápida propagação”.
Todas estas, como tantas outras, mensagens falsas, mas que alegam ter como fonte alguém credível, muitas vezes um “amigo ou amigo de um amigo médico”.
Conforme refere a DGS, importa, por isso, estar atento “à circulação nas redes sociais de informação e mensagens não oficiais e não confirmadas, de forma a evitar alarmismos infundados”.