“Achatar a curva” pode salvar vidas
Para “achatar a curva” de transmissão do novo coronavírus e evitar o colapso dos serviços de saúde é essencial adoptar medidas preventivas. Mas, uma equipa de investigadores do Imperial College de Londres alerta para o risco de um novo aumento de casos quando as medidas forem levantadas.
- Especial interactivo: Como achatar a curva? O que revelam as experiências dos países
Há uma imagem que se tornou viral. É um gráfico com uma onda alta e com outra mais baixa e mais estendida no tempo, com uma linha traçada a servir de tecto a esta última. O tal tecto representa a capacidade de resposta dos serviços de saúde e significa, quando ultrapassado, o colapso. É essencial manter a onda abaixo da linha, “achatar a curva”, como provam já vários estudos realizados sobre a dinâmica da covid-19. O objectivo final não é travar o surto, mas “apenas” abrandá-lo pode ser decisivo e o suficiente para salvar vidas. E o que faremos a seguir a “achatar a curva”? Um estudo do Imperial College de Londres alerta para o risco de um novo pico.
Independentemente das variáveis e parâmetros que se coloque num modelo matemático e epidemiológico para calcular a evolução da covid-19 no mundo, é preciso conseguir “achatar a curva”. Independentemente do que ainda não sabemos ao certo sobre o vírus – desde o número de casos secundários gerados por uma pessoa infectada à real taxa de mortalidade (que só saberemos do fim de tudo), passando ainda pela duração do período contagioso após a incubação (que parece ser de cerca de cinco dias) –, é preciso “achatar a curva”. Porquê? A resposta é dada em coro por profissionais de saúde pública, decisores políticos, epidemiologistas e outros investigadores: nenhum sistema de saúde aguentaria a sobrecarga de um pico de covid-19 sem controlo. Em vez de um insustentável pico de procura de cuidados de saúde, teremos um planalto com melhores hipóteses para doentes, profissionais de saúde e serviços, garantem os especialistas.
No limite, a grande vantagem de “achatar a curva” será permitir que mais pessoas em estado grave possam obter os cuidados de saúde necessários para o suporte das suas vidas. Ou seja, sem dramatismo, “achatar a curva” pode salvar vidas. Nas palavras do especialista em saúde pública Drew Harris (da Universidade de Jefferson, EUA), que fez a versão original do gráfico das ondas que já correu mundo: “É a diferença entre encontrar uma cama de cuidados intensivos e ventilador ou ser tratado numa tenda montada num parque de estacionamento.” É preciso não esquecer que esta “curva” de procura por causa da covid-19 se soma a todas as outras linhas de doenças que não pararam de existir e ocupar os profissionais de saúde.
Para quê adiar a infecção?
Mas os investigadores também têm defendido que muitas pessoas (talvez entre 60 e 70% da população) vão acabar por ser infectadas e também que a grande maioria (mais de 80%) apenas manifesta sintomas ligeiros ou fica mesmo assintomática.
Então, para quê adiar o inevitável? Não era mais fácil deixar a infecção alastrar-se e arrumar o assunto deixando o vírus à solta, garantindo uma imunização geral forçada que alguns especialistas dizem ser possível com 60% das pessoas infectadas? Não. Primeiro, essa imunização não é garantida, não se sabe ainda se uma pessoa infectada pode voltar a ficar doente ou quanto tempo dura a imunização. Por outro lado, uma exposição ao vírus pode não causar qualquer dano a muitas pessoas, mas também é certo que pode ser fatal para outras, a população mais idosa e com doenças crónicas associadas. Seria, uma medida, no mínimo, irresponsável.
Também há a questão da mutação deste vírus, que pode encontrar formas de ir contornando as defesas criadas pelo sistema imunitário. Há ainda muita coisa que não sabemos sobre o SARS-CoV-2. Além disso, “achatar a curva” permite ganhar tempo e isso é importante em vários planos: para organizar a resposta, desenvolver tratamentos e até para encontrar uma vacina.
No debate das medidas surgiu recentemente um ponto de discórdia. Está o Reino Unido a optar por tentar conseguir uma imunização de grupo, abstendo-se de tomar medidas de isolamento e deixando a infecção alastrar na comunidade? “As pessoas interpretaram mal a frase imunidade de grupo e perceberam que iríamos ter uma epidemia para infectar as pessoas”, diz Graham Medley, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, citado num artigo do jornalista de ciência Ed Yong da revista The Atlantic. “Medley preside um grupo de cientistas que modelam a propagação de doenças infecciosas e aconselham o Governo sobre respostas a pandemias. Ele afirma que o objectivo real é o mesmo de outros países: achatar a curva, atordoando o início das infecções. Como consequência, a nação pode alcançar imunidade de grupo; é um efeito colateral, não um objectivo”, esclarece Ed Yong, concluindo que tudo terá sido um mal-entendido e o resultado de uma péssima estratégia de comunicação.
Risco de “rebound”
Um artigo publicado esta segunda-feira pela (vasta) equipa responsável pela resposta à covid-19 no Imperial College de Londres analisou o impacto das denominadas “intervenções não farmacêuticas” na redução da mortalidade e procura de cuidados de saúde. “Concluímos que qualquer intervenção de isolamento terá uma eficácia limitada, sendo necessárias várias acções combinadas para termos um impacto substancial na transmissão”, escrevem os investigadores.
O estudo refere que a política de mitigação (com o isolamento domiciliário de casos suspeitos e o distanciamento social das pessoas mais velhas ou outros factores de risco) pode reduzir o pico da procura de serviços de saúde em dois terços e as mortes para metade. Ainda assim, isso não vai evitar muitas vítimas nem a sobrecarga dos serviços de saúde, argumentam os especialistas que, assim, defendem que a opção deve ser uma política de supressão, com medidas mais rigorosas como o encerramento de escolas e universidades.
“O principal desafio da supressão é que esse tipo de pacote de intervenção intensivo – ou algo equivalente em termos de eficácia na redução da transmissão – precisará ser mantido até que a vacina se torne disponível (potencialmente 18 meses ou mais), uma vez que prevemos que a transmissão vai voltar rapidamente se as intervenções voltarem a relaxar”, lê-se no artigo que alerta para o risco de rebound, ou novo pico.
Focando-se numa análise da situação no Reino Unido e nos EUA, os autores notam que “é improvável que a mitigação seja viável sem que os limites de capacidade de surto de emergência dos sistemas de saúde do Reino Unido e dos EUA sejam excedidos muitas vezes”. Nos seus cálculos – com a aplicação de medidas como o isolamento de casos, quarentena familiar e distanciamento social dos idosos –, “os limites para camas nas enfermarias e nas unidades de cuidados intensivos seriam excedidos em pelo menos oito vezes no cenário mais optimista”. Além disso, sublinham, “mesmo que todos os doentes pudessem ser tratados, prevemos que ainda haverá 250 mil mortes no Reino Unido e 1,1 a 1,2 milhões nos EUA”. A supressão epidémica é a única estratégia viável no momento actual, concluem admitindo que os efeitos sociais e económicos serão profundos.
Os cientistas defendem que o distanciamento social intermitente acompanhado com acções intensas na vigilância da doença pode “permitir que as intervenções sejam relaxadas temporariamente em janelas de tempo relativamente curto, mas as medidas precisarão ser reintroduzidas se ou quando os números de casos voltarem”. Por fim, a equipa do Imperial College conclui que “embora a experiência na China e agora na Coreia do Sul mostre que a supressão é possível a curto prazo, resta saber se é possível a longo prazo e se os custos sociais e económicos das intervenções adoptadas até agora podem ser reduzidos”. Mas, o mais importante agora é garantir que o maior número de pessoas sobrevive até esse longo prazo.