Ainda se pratica mutilação genital em 92 países – e há muitos dados por recolher
Estimativas apontam para 200 milhões de mulheres e raparigas vítimas do corte, mas reportam-se a apenas 31 países. Autores do estudo pedem inquéritos a nível nacional para se desenhar um cenário global mais rigoroso.
Um relatório elaborado por três organizações de defesa de direitos humanos e das mulheres, publicado esta terça-feira, revela que se pratica mutilação genital feminina em pelo menos 92 países. O estudo pretende alertar os governos nacionais para a urgência de se investirem mais recursos na investigação deste crime, relembrando que os cerca de 200 milhões de vítimas, calculadas pelas Nações Unidas, se reportam apenas a 31 países.
Apesar de o relatório concluir que nos países onde mais se tem batalhado contra o ritual do corte ou circuncisão feminina – maioritariamente em África – o número de vítimas esteja a decrescer e o grau de consciencialização a aumentar, em comparação com anos anteriores, o facto de a amostra ser reduzida, também em termos geográficos, dificulta a projecção de um cenário mais rigoroso a nível mundial.
Vinte e sete dos 31 países abrangidos pelos cálculos da ONU são africanos. Os restantes são Iraque, Iémen, Maldivas e Indonésia. Ou seja: não só ou número de vítimas é significativamente superior aos 200 milhões, como a capacidade de resposta global a uma prática que é considerada criminosa em praticamente todo o mundo é manifestamente insuficiente sem dados mais exactos.
“Há cada vez mais indícios sobre a ocorrência de mutilação genital feminina num maior número de países do que aqueles onde ela é quantificada. O nosso objectivo é realçar o facto de isto ser uma questão global, que está a acontecer em todo o mundo e que requer uma resposta global”, sublinha Ghada Khan, uma das autoras do relatório, pedindo aos governos mais inquéritos a nível nacional e local.
Fenómeno transversal
Intitulado Female Genital Mutilation / Cutting: A Call For a Global Response e elaborado pela Equality Now, pela End FGM European Network e pela End FGM/C US Network, o estudo reuniu e compilou toda a informação oficial e académica sobre o tema, para concluir que, entre os 92 países identificados, contam-se representantes de África, Ásia, Europa, Médio Oriente, América do Norte e América Latina.
Classificando como mutilação genital “todos os procedimentos que envolvam a remoção, parcial ou total, da genitália feminina externa ou que causem outras lesões a órgãos genitais femininos, por motivos não-médicos”, os autores do relatório identificam como principal ponto em comum, entre quem a realiza ou quem obriga outros a fazê-lo, a tentativa de repressão do desejo ou do interesse sexual de raparigas e mulheres.
E apesar de ser prática mais corrente em países de maioria muçulmana, o relatório constata que o ritual do corte cruza diversas religiões e culturas: desde os cristãos nos Estados Unidos, passando pelas tribos indígenas da Colômbia ou indo até aos judeus na Etiópia.
Portugal também vem referido, com 6576 casos registados de vítimas e 1365 raparigas em situação de “elevado risco” de também o virem a ser. No espaço europeu é o Reino Unido quem lidera a tabela (137 mil casos), seguido de França (125 mil). E a informação disponível nos EUA permite concluir que cerca de 513 mil mulheres ou raparigas foram vítimas de mutilação genital ou estão em risco de o vir a ser.
“Há demasiado silêncio em redor desta prática e enquanto não falarmos sobre ela nunca saberemos o número exacto de raparigas afectadas nos EUA. Não se trata de uma questão racial, cultural, religiosa, regional ou de outra natureza qualquer – é uma questão humana”, disse Jenny aos autores do relatório.
Nascida numa família conservadora cristã, na região do Midwest, nos EUA, Jenny foi vítima de mutilação genital aos cinco anos, tendo-lhe sido explicado, mais tarde, que “sexo por prazer era errado numa mulher”.
“Há um verdadeiro muro de silêncio aqui [Canadá]. As pessoas não se metem no assunto, justificando: ‘É a tradição deles’. Esta atitude está errada, errada, errada”, lamenta Serat, canadiana de ascendência somali, cortada aos 13 anos, na Somália. “É por isso que a mutilação genital feminina perdura há centenas de anos”.