O melhor que nos podia acontecer (se aceitarmos a lição)
Praticamente de um dia para o outro, quase sem hesitação aparente, o mundo toma medidas sem precedentes, com consequências sem precedentes. Pararam as fábricas. Fecharam-se as lojas. Estacionámos o carro, passámos a evitar o avião. Racionamos o consumismo. Desacelerou o quotidiano.
No Natal passado recebi no sapatinho o livro Terra Inabitável. Perguntei-me se merecia “a prenda”: um matacão de livro, um estilo de escrita veloz e (sobretudo) um tópico tão pesado que mais inspira pesadelos. Eu que em média não consigo ler mais que um par de páginas por dia, cansada, antes de deitar.
Nestes dias sinto-me particularmente grata pela oferta. Com cenários (im)possíveis, passados, presentes e futuros, David Wallace-Wells preparou-me de um modo estranho para o que encaro agora, para esta crise que vivemos. A interpretação dos factos, a visão apocalíptica: a escala do impacto humano no planeta poderá ser de tal dimensão que será improvável a Humanidade ser capaz de se desviar de um destino de miséria colectiva. Pelo menos em teoria.
Os factos que vivemos hoje, as reacções ao novo coronavírus, são para mim curiosamente reconfortantes. Praticamente de um dia para o outro, quase sem hesitação aparente, o mundo toma medidas sem precedentes, com consequências sem precedentes. Pararam as fábricas. Fecharam-se as lojas. Estacionámos o carro, passámos a evitar o avião. Racionamos o consumismo. Desacelerou o quotidiano.
A crise global desta pandemia – ou melhor, o que estamos a tentar fazer contra ela – mostra-nos que se as nações quiserem é possível agir, em massa, para o bem individual e comum. Mostra-nos que há objectivos globais que se podem atacar rápida e efectivamente, com medidas globais e consequentes.
Estamos hoje a demonstrar, numa experiência à escala humana, que é possível juntar forças para tentar travar destinos traçados por prognósticos devastadores. Munição brutal para movimentos ambientalistas, para os nossos filhos e a sua bandeira Fridays For Future.
A experiência é igualmente forte a nível local, a título pessoal. O pulso das nações abranda e o sentido de comunidade acentua-se. Recolhidos, passámos a ter tempo, para nós e para os que coabitam entre as quatro paredes. Pensamos mais no que é melhor e isso implica agora pensar também, naturalmente, nos outros. E assim elevamos à nossa frente um espelho onde reconhecemos que os outros – aqueles que normalmente lá longe são afectados por calamidades – somos todos nós.
O entusiasmo abranda talvez se encararmos a verdade inconveniente: só mesmo quando a desgraça toca à porta, só quando nos toca na pele, é que escolhemos agir. Mas a experiência está feita, a teoria do destino sem retorno desarmada. E quem sabe, aceite a lição, poderemos – senão globalmente – começar a procurar fazer mais escolhas certas, para nós, para os outros e para o nosso planeta.