A União Europeia e a democracia têm de estar à altura
Um programa de emergência de larga escala requer um financiamento de emergência também de grande escala. Dadas as circunstâncias excecionais, o Banco Central Europeu tem de ser autorizado a financiar tal programa. A UE tem de atuar já, não só para evitar o sofrimento da sua população, mas também para se salvar a si mesma e os valores democráticos que diz defender.
O mundo vive um evento extremo que ameaça a saúde e o bem-estar económico de toda a população. Em algumas regiões, grande parte da população é obrigada a ficar em casa. O desafio é manter a produção de bens e serviços essenciais e garantir que chegam a tempo a hospitais, famílias e empresas. Para sair da crise económica temos antes de resolver a crise na saúde. O conhecimento profundo das ligações da cadeia de produção e da sua logística será um instrumento crucial de planeamento. As grandes bases de dados disponíveis têm de ser usadas para monitorizar em tempo real a evolução da economia, identificando estrangulamentos na cadeia produtiva. Tem de se apoiar os que perderão uma parte significativa do seu rendimento. Diminuir a incerteza sobre a futura solvência dos negócios é crucial para assegurar o fornecimento de bens e serviços essenciais. Um programa de emergência de larga escala requer um financiamento de emergência também de grande escala. Dadas as circunstâncias excecionais, o Banco Central Europeu tem de ser autorizado a financiar tal programa. A UE tem de atuar já, não só para evitar o sofrimento da sua população, mas também para se salvar a si mesma e os valores democráticos que diz defender.
1. A pandemia da covid-19 é um evento extremo que pode ameaçar a sobrevivência da União Europeia e dos regimes democráticos dos seus membros. A pandemia é uma tremenda ameaça quer à saúde pública, quer ao bem-estar económico de toda a população. A UE tem de atuar já para impedir que o sofrimento atinga níveis inéditos na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, bem como para salvaguardar os valores democráticos que representa.
2. Sob um ponto de vista económico, esta crise é peculiar porque, devido ao risco de contágio, indústrias cuja produção exija alguma proximidade física entre pessoas estão sujeitas a enormes restrições. A natureza das atuais economias descentralizadas tornam-nas extremamente vulneráveis ao completo encerramento de alguns sectores de atividade. A implicação disso é que não será possível sair da crise económica sem antes dirimir a crise na saúde.
3. A disrupção causada pelo vírus covid-19 afeta a oferta e a procura simultaneamente, com efeitos de feedback negativos. O aspeto fundamental desta disrupção é a sua magnitude: obrigam-se populações inteiras de algumas regiões e de alguns países a ficar em casa. Se os trabalhadores faltam ao trabalho, as empresas não produzem; se os compradores não podem ou não querem fazer encomendas, a produção das empresas na cadeia de produção cairá. Como consequência, falhas nos pagamentos aumentarão e disseminar-se-ão pela cadeia económica e financeira. As empresas não conseguirão pagar aos fornecedores, pagar as suas dívidas e cumprir as suas obrigações fiscais ou fazer os pagamentos à Segurança Social. Se as empresas não produzem, não se gera rendimento. As famílias não conseguirão pagar as rendas, as prestações aos bancos, o saldo do cartão de crédito, a escola dos filhos, os impostos, etc. Em breve, tudo isto pode tornar-se realidade para uma fração surpreendentemente grande da economia. Por breve, queremos dizer algumas semanas, possivelmente.
4. Para compreender a magnitude provável da crise, repare que se a maioria das pessoas têm de estar em casa, então há uma queda abrupta no número efetivo de trabalhadores. Já acontece em alguns países e outros se seguirão. Mesmo no pico da última crise financeira internacional, a quebra no número de trabalhadores não é sequer comparável. Portanto, é de esperar uma redução na atividade económica muito mais significativa agora.
5. No lado real da economia, a quebra significativa do produto é inevitável dada a necessidade de as pessoas não saírem de casa. Nesta frente, o desafio é assegurar a produção de bens e serviços essenciais e garantir que chegam ao necessário destino — hospitais, famílias e empresas — a tempo. Por exemplo, a provisão de equipamentos de proteção para os que continuam a trabalhar é fulcral, tal como garantir o fornecimento de equipamentos médicos, como os kits de testes. A afetação de recursos adicionais para a investigação médica é um ponto chave e a coordenação internacional neste esforço não pode falhar.
6. O conhecimento profundo das ligações da cadeia de produção e da sua logística será um instrumento crucial de planeamento. Grande parte da atividade económica faz parte de cadeias de valor internacionais. Portanto, ações que pretendam assegurar o funcionamento das cadeias de produção industriais e comerciais têm de ser tomadas não apenas a nível nacional, mas também a nível europeu ou até mesmo mundial. É fundamental identificar os recursos que estão rapidamente disponíveis para responder à crise que vivemos. É também necessário avaliar a distribuição de pessoas e empresas no espectro económico e geográfico e identificar os mais afetados. Os dados disponíveis, coligidos quer pelo sector público quer privado, têm de ser recolhidos e usados para monitorizar em tempo real a evolução da economia, identificando estrangulamentos na cadeia económica que impeçam ou atrasem a produção de bens essenciais. A disponibilidade de diversas bases de dados, combinadas com instrumentos de análise de dados, são da maior importância para guiar e garantir que as políticas económicas são bem fundamentadas.
7. No lado nominal da economia, deve-se apoiar o rendimento dos que nas próximas semanas (ou meses) perderão uma parte significativa do seu rendimento. O apoio direto ao rendimento nominal das famílias é essencial para garantir que têm acesso aos bens essenciais.
8. Garantir que as empresas têm acesso a financiamento extraordinário é necessário para impedir que a crise financeira não agrave a crise da economia real e aumente ainda mais as tensões na sociedade, potencialmente para níveis perigosos. Os contratos de crédito tradicionais não são adequados: para manter a confiança e levar a que os empresários escolham manter as suas empresas abertas, o impacto destes créditos adicionais não pode ter muito peso no seu passivo. Reduzir a incerteza sobre a futura solvabilidade dos seus negócios também é essencial para garantir que o fornecimento de bens e serviços essenciais não é interrompido.
9. Um programa de emergência de larga escala requer um financiamento de emergência também de grande escala. Os países têm de ter a garantia de poderem ter défices temporários sem terem de enfrentar outra crise das dívidas soberanas. Para salvar o seu sistema bancário, a Irlanda teve um défice orçamental de 32% do seu PIB em 2010. Na atual crise de saúde, o governo terá de financiar trabalhadores (por exemplo, os que estão em casa sem rendimentos), financiar as empresas direta e indiretamente (não cobrando impostos, por exemplo) e, claro, tem de equipar os hospitais. É difícil prever a dimensão das necessidades de financiamento, mas é provável que exija uma intervenção de uma magnitude extraordinária. Medidas excecionais que permitam este financiamento de emergência têm de ser possíveis, nem que para isso seja necessário fazer correções à legislação da UE. Para reduzir problemas de risco moral, esse financiamento poderá estar associado a quebras nas receitas fiscais e a um aumento das despesas diretamente relacionadas com tratamentos e contenção do vírus.
10. Neste contexto de enorme incerteza, acreditamos que qualquer coisa semelhante à monetização do défice (possivelmente com nome diferente) é uma parte necessária da solução. Face a circunstâncias excecionais, o Banco Central Europeu tem de ser autorizado a financiar tal programa. Uma possibilidade é que o BCE o faça na forma de empréstimos de longuíssimos prazos (mais de 50 anos) a taxas de juro muito baixas (possivelmente, zero) e, com certeza, com amortizações muito diferidas no tempo e crescentes no tempo. Medidas drásticas, como imprimir moeda para entregar a alguns sectores da população e das empresas, ou a criação das Eurobonds ou das European Safe Bonds, devem ser seriamente consideradas pelas autoridades políticas e pelo Banco Central Europeu.
11. Em economia as expectativas são essenciais e podem ajustar-se muito rapidamente. As autoridades públicas têm de atuar de uma forma que faça com que os agentes económicos compreendam que, apesar de vivermos tempos difíceis, a situação está sob controlo. Um programa de intervenção em grande escala que lide com o que descrevemos tem de ser anunciado o quanto antes.
12. A União Europeia tem de agarrar esta oportunidade para demonstrar que o bem-estar das populações é a sua prioridade. Numa união altamente integrada, respostas nacionais e descoordenadas não serão eficazes. A UE não pode esperar enquanto a crise se desenrola. Tem de anunciar uma resposta vigorosa e unida, mostrando que fará tudo o que tiver de ser feito para defender a integridade humana, social, económica e política da UE. Estes tempos são genuinamente excecionais e será muito pior se a UE não apoiar os seus Estados-membros nos passos decisivos para enfrentar a pandemia e mitigar as suas consequências. O preço de atuar hoje será muito menor do que o de atuar amanhã. Não queremos ser os sonâmbulos do século XXI.
Cátia Batista, Nova SBE; Fernando Alexandre, Universidade do Minho; Fernando Anjos, Nova SBE; Francisco Veiga, Universidade do Minho; João Cerejeira, Universidade do Minho; José Tavares, Nova SBE; Luís Aguiar-Conraria, Universidade do Minho; Miguel Faria e Castro, Federal Reserve Bank of St. Louis; Miguel Portela, Universidade do Minho; Odd Straume, Universidade do Minho; Pedro Bação, Universidade de Coimbra; Pedro Brinca, Nova SBE; Sandra Maximiniano, ISEG, Universidade de Lisboa; Susana Peralta, Nova SBE; Tiago Sequeira, Universidade de Coimbra
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico