O corona e a Economia da sensatez
Não há nenhuma razão incontornável para que a crise de saúde pública se transforme numa crise económica. Nenhuma, a não ser a obstinação da ortodoxia económica.
Ainda não sabemos qual será a extensão da pandemia da covid-19 e este artigo não pretende contribuir para a epidemia de opiniões clínicas, de competência variável, que abundam no nosso espaço público. Sobre a resposta de saúde pública, ouça-se os especialistas e aja-se em conformidade. Mas mesmo que se siga as orientações das instituições internacionais para minorar a crise de saúde pública, a verdade é que, mesmo nos cenários mais positivos, uma resposta vigorosa na contenção da epidemia não impedirá muitos dos seus impactos económicos. Algumas das respostas de saúde pública são, aliás, um factor de agravamento desses impactos. Isto não quer dizer, obviamente, que não sejam postas em prática, mas exige que à resposta clínica se associe uma resposta económica igualmente determinada.
“A única coisa que devemos temer é o próprio medo.” A famosa frase de Roosevelt, no seu discurso inaugural como presidente norte-americano, foi proferida em 1933, no auge da Grande Depressão. Com a economia em colapso e o desemprego a disparar, Roosevelt respondeu ao pânico e desespero das pessoas com um enorme aumento do investimento público, um programa de emprego do Estado, sistemas de garantia de pensões e subsídios de desemprego e o reforço da regulação financeira. O New Deal foi crucial porque mobilizou o Estado e a sociedade para uma resposta forte e solidária.
Roosevelt, aparentemente, não ficou impressionado com Keynes e a Teoria Geral só seria publicada mais tarde, mas é difícil não encontrar pontos de contacto muito evidentes, incluindo na candura com que enfrentavam um dos momentos mais negros da economia mundial. “Temos um problema de dínamo”, escrevia Keynes três anos antes. Ambos exibiam a tranquilidade de quem tem um plano e não precisa de escolher entre o pânico e a displicência.
Hoje, o pânico social associa-se às medidas tomadas por entidades públicas e os sintomas multiplicam-se: encerramento de fábricas e interrupção de cadeias de produção, numa altura em que os índices de produção industrial já mostravam sinais de abrandamento. Na China, a venda de carros sofreu uma queda de 92% só na primeira metade de Fevereiro. A OCDE alertou para as consequências económicas da epidemia, que pode cortar as previsões do crescimento mundial para metade (de 2,9% para 1,5%) e levar o Japão e a zona euro à recessão já este ano. Os mercados financeiros começaram a semana com quebras acentuadas, o que levou a que, nos EUA, se tenha interrompido as transações durante 15 minutos, um “travão” que não era acionado desde dezembro de 2008, em plena crise do subprime. A Reserva Federal reagiu rapidamente e anunciou um reforço das injeções de liquidez nos mercados para 150 mil milhões de dólares por dia, mas a incerteza mantém-se.
É por isso que a economista-chefe da OCDE, Laurence Boone, defendeu medidas urgentes para enfrentar os próximos tempos – precisamos de um “big bang orçamental”. Com a política monetária no limite e taxas de juro reais negativas, a economista lembrou que “não são os bancos centrais que nos vão salvar desta vez, mas os orçamentos dos Estados podem fazê-lo”. Sobre o impacto destas medidas, Boone foi lapidar: “Não se deve colocar a questão de até que ponto se vai aumentar o défice. Temos simplesmente de o fazer se não queremos juntar uma crise económica a uma crise de saúde.”
Mario Draghi e Christine Lagarde já tinham deixado claro que o BCE não pode ser o único a apostar em políticas contra-cíclicas que evitem uma armadilha deflacionista. Lagarde avisou na quarta-feira os governos de que é preciso reforçar a despesa e investimento público para evitar uma situação idêntica à de 2008. O Financial Times dedicou um editorial à necessidade da política orçamental voltar a ter um papel ativo. O próprio centro de investigação do FMI publicou há poucos anos um estudo sobre a importância do investimento público para o crescimento e criação de emprego, sublinhando que o impacto na economia é maior em períodos de baixas taxas de juro, como o que atravessamos.
A lucidez de tanta gente insuspeita contrasta com a negligência da Comissão Europeia. O comissário Paolo Gentiloni reconheceu o impacto negativo do vírus, mas sublinhou que as atuais regras já incluem a flexibilidade necessária. Valdis Dombrovskis, conhecido defensor da austeridade, juntou-se-lhe rapidamente. Perante as críticas, a presidente da Comissão anunciou um pacote financeiro de... 0,05 a 0,18% do PIB UE-27. Os responsáveis europeus parecem não ter aprendido nada com a crise do euro e preparam-se para cometer os mesmos erros. A preocupação é não criar um precedente de heteredoxia, não vá a coisa resultar.
Por cá, o Governo parece acompanhar a estratégia de esperar para ver. As propostas já apresentadas limitam a resposta económica a apoios a empresas que nem sequer asseguram a totalidade dos rendimentos aos trabalhadores, financiadas por um desfalque à segurança social. Medidas que não fazem nada quanto aos serviços públicos que podem contribuir para a contenção da pandemia e são claramente tributárias da ideia de que o dinheiro será melhor utilizado pelos privados. Esse preconceito, que não é verdade em geral, é-o ainda menos em tempos de crise. Basta ver como todos, liberais ou socialistas, se viram para o SNS na hora de aperto, enquanto as seguradoras tiram o cavalinho da chuva. Esta opção confirma ainda que o Governo continua com um olho na crise e outro no défice, não tentando sequer aproveitar as declarações públicas de responsáveis europeus sobre a flexibilidade das regras orçamentais. A teimosia com o excedente não tem só a ver com Bruxelas. É uma insensatez convicta.
Não há nenhuma razão incontornável para que a crise de saúde pública se transforme numa crise económica. Nenhuma, a não ser a obstinação da ortodoxia económica. Os instrumentos cruciais para uma resposta clínica são conhecidos e consensuais. As ferramentas de política económica são antigas, testadas e comprovadas. Poupemos o país a mais uma crise evitável.
José Gusmão é economista e eurodeputado do Bloco de Esquerda; Vicente Ferreira é economista