& etc..., a “esgrimir a argúcia das letras contra a perniciosa tesoura da ignorância”

Agora que um maldito vírus nos tolhe os movimentos públicos, a leitura privada do volume do magazine & etc... pode valer por muitas e muitas saídas.

Na mesma semana em que morreu o actor Max von Sydow, que Jorge Mourinha elogiou no PÚBLICO como “um emblema de uma espécie de nobreza, um resquício do Velho Mundo perdido no Novo Mundo”, eis que, de um outro “Velho Mundo” (sempre admiravelmente novo), foi lançada em Lisboa, na Fundação Gulbenkian, a edição fac-similada do magazine & etc…, publicado com o Jornal do Fundão entre 1967 e 1971, 26 números encadernados.

Do generoso volume, na verdade datado de Dezembro de 2019, já deu conta neste jornal Pedro Marques (editor/autor em Montag), no excelente texto “A herança de um jornal ‘sui generis’”, publicado em 3 de Março. E da editora que se lhe seguiu, herdando o título, há anteriores testemunhos, como o documentário & etc, de Cláudia Clemente (2007, editado em DVD pela Midas), o livro & etc Uma Editora no Subterrâneo (2013) e o livro-catálogo & etc Prolegómenos a uma Editora (2017, este “dedicado às duas fases do periódico & etc, primeiro como suplemento cultural do Jornal do Fundão, depois de forma autónoma”), editados pela Letra Livre. E há ainda a belíssima entrevista (“Resistência é a palavra”) que Alexandra Lucas Coelho fez a Vitor Silva Tavares, alma da “aventura poética” que foi a & etc, por ocasião dos 35 anos da editora (em 2007) e à data editada no PÚBLICO online.

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Só que o volume não é apenas (como se isso fosse pouco!) o somatório das 26 edições reproduzidas a partir dos originais, que até aqui só estavam disponíveis, se encontrados, a peso de ouro em alfarrabistas. A antecedê-los, como extenso prefácio, há 36 páginas de textos recentes. O primeiro deles, intitulado “& etc… Nota panfletária ou a dentada necessária” (assinado por Rui Pelejão & Joana Morão, respectivamente do Jornal do Fundão e da Canto Redondo, irmanados na edição do livro), fala de um tempo “em que os jornais eram amigos dos escritores e lhes davam santuário e voz”, lembrando que foi nesse tempo que “nasceu um dos mais originais e irreverentes suplementos literários da imprensa, o & etc… Magazine das Artes, das Letras e do Espectáculo”, fruto da “irmandade entre jornalismo e literatura e da associação, ou melhor, da cumplicidade, entre António Paulouro [1915-2002], jornalista da cepa dos grandes e fundador do Jornal do Fundão, e Vitor Silva Tavares [1937-2015], autor, editor e guerrilheiro das letras”, que, juntos – acrescentam –, “serviam alto repasto para todos os gostos, deixando de fora apenas a mediocridade”.

E depois há a história desses tempos, lembrada primeiro num texto do próprio Vitor Silva Tavares, escrito em 2015 (“Nos sem-anos do Paulouro”), depois em textos de Paulo da Costa Domingos (“De regresso à luta”), Emanuel Cameira (“Um ariete de oito páginas”), Júlio Moreira (“Reflexões e memórias de um suplemento cultural”) e em depoimentos de antigos colaboradores do magazine (por esta ordem nas páginas): Lauro António, Liberto Cruz, David Evans, Almeida Faria, Luís Gasca, Aníbal Fernandes, Nuno Júdice, Fernando J. B. Martinho, João Medina, Jorge Silva Melo, J. M. Rocha de Sousa e Nicolau Saião.

Mas mesmo lidos todos os intróitos, e tendo neles inúmeras pistas para entender o que foi o & etc… nos seus primórdios, nada substitui o exercício de folhear, mesmo ao acaso, as antigas páginas, mergulhando em polémicas já extintas mas que podiam ser de ontem, saboreando a verve literária e iconoclasta de tantos textos, passando, num virar de página, de inéditos (à data) de Régio ou Maria Teresa Horta para a história da BD internacional (com a mão de Vasco Granja), de Hawks para Luzia Maria Martins, de Malraux para os hippies, d’O Delfim de José Cardoso Pires (ainda em preparação) para o “Mostruário de novos mitos” de Listopad ou para o “Elogio do hand-ball”, de José-Augusto França. E ler, pelo caminho, Alexandre O’Neill, Luís Pignatelli, E.M. de Melo e Castro, Luiz Pacheco, Ana Hatherly, Luiza Neto Jorge, Eduardo Prado Coelho, Maria Alberta Menéres, Ernesto Sampaio, António Gedeão, José Blanc de Portugal, Júlio Moreira, Ruy Belo, Manuel de Castro, Virgílio Martinho, Rocha de Sousa, Mário Dionísio, José Gomes Ferreira, Pedro Oom e, claro, o próprio Vitor Silva Tavares (autor quase único da impagável e mordaz “Campanha Alegre”, rubrica regular de título idêntico a que Eça deu às suas Farpas).

E tudo isto, voltando ao texto de Rui Pelejão & Joana Morão, nos mostra “como foi esgrimir a argúcia das letras contra a perniciosa tesoura da ignorância”. Agora que um maldito vírus nos tolhe os movimentos públicos, a leitura privada deste volume pode valer por muitas e muitas saídas. Até porque há-de incentivar outras. E bem proveitosas.

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